Nicola-Douchez, arte de fibra e pesquisa
– Tentamos dar à tapeçaria uma nova dimensão criativa. A tapeçaria que buscamos afasta-se da idéia tradicional de uma representação plana. Criamos um objeto tecido... A reforma de Lurçat foi unicamente uma reconstrução da arte do plano, com uma técnica (a tecelagem) e o material (a fibra) específicos. Trata-se agora de criar uma arte da fibra tecida, libertada de qualquer ligação com as artes de superfio pintada... A fibra e o tecido possuem um volume com qualidades próprias de tensão, elasticidade, comportamento, enfim um lugar no espaço. A obra tecida deve modelar o espaço numa forma multidimensional.
Nicola abre o velho portão de ferro batido de sua casa – ateliê da Alameda Glete. São nove horas da manhã e ele tem a cara lavada de quem acordou há pouco. No rosto jovial e sorridente não esconde o traço peninsular que herdou do velho avô imigrante escultor. Apesar do dia de trabalho que inicial, veste-se até que com certo requinte. No longo corredor, com vistosas plantas até o fundo, brincam “Cirano” e “Sabrina”, seus dois dobermanns de estimação. Nicola passa entre as folhagens e os animais inquietos com um gesto de afago. O escritório é funcional e moderno, sobressaindo-se vistosa coleção de medalhas de Dali, relógios antigos, tecidos e cerâmicas pré-incaicas e peças típicas mexicanas.
– Nossa exposição na “Cosme Velho” mostra como abandonamos a tradição da tapeçaria plana. A própria história da tapeçaria mostra como ela caminhou sempre em direção à pintura e à arquitetura. Recuperamos as três dimensões, devolvemos aos tapetes um sentido tridimensional, dentro de uma nova técnica... Basicamente, o que estamos fazendo é continuar pesquisas e desenvolver temas completamente novos surgidos dali... Apresentamos, pois, agora com nossas “formas tecidas” uma tapeçaria tridimensional, explorando as possibilidades que existem entre a pintura e a escultura, sem a dureza da pedra.
Mais entroncado, de bigodes finos e rosto tostado de sol de seu sítio – onde vive recluso, pois detesta a cidade grande e procura esquecer a sociedade – chega Douchez, apressado. Os dois iniciarão dali a instantes a faina diária, no ateliê que fica aos fundos, já tomado por meia dúzia de bordadeiras que fiam e tecem sem parar, segundo os cartões e maquetes e a assistência direta e pessoal da dupla. Ele é também professor de Literatura e estética da Faculdade de Filosofia de Santo André e sua paixão é filosofar e bater grandes papos sobre literatura, filosofia, arte ou questões sociais. Douchez toma um café. O sol entra de rijo na sala de alto pé direito, bate frontalmente iluminando as belas gravuras na parede, de Grassman e Picasso, Tarsila e Bonadei, Aldemir e Dali, Lívio Abramo e Emanuel Araújo.
– Estamos expondo vários temas que desenvolvemos paralelamente, todos de uma mesma linha, que consideramos internacional... Fizemos um tipo de arte que tem similar em dois ou três lugares do mundo, embora não participemos de nenhum movimento de fora... Acontece que somos artistas contemporâneos e não entendemos como tapeçaria só aquele tipo de trabalho feito sobre o folclorismo absolutamente superficial... O mais importante, para nós, é manter um espírito de verdadeira criatividade e de liberdade.
O telefone toca duas vezes. São clientes, proprietários de grandes hotéis ou bancos. A grande tapeçaria que Nicola e Douchez fizeram para o Hotel Casa Grande, em Guarujá, tem sido um chamariz efetivo para novas encomendas – não estivessem ambos, já consagrados no mercado inero como no internacional. Muitas vezes os pedidos chegam dos Estados Unidos, Alemanha, México, Uruguai, países da África.
Usam em seus trabalhos geralmente a lã crua comercial, e também sisal, estopa, cânhamo, linho e algodão. Antes de cada trabalho, estudam o ambiente, a arquitetura da casa, e fazem uma maquete pequena da futura tapeçaria.
– Apesar de algumas críticas, não achamos a arte do nosso ateliê não-nacional. Afinal, usamos materiais nossos, com cores nossas, trabalho nosso, adaptados à nossa arquitetura... Agora, não fazemos tapeçaria-bordado nem folclorismo de efeito... Nossos trabalhos exploram as possibilidades que existem entre a pintura e a escultura, mais “formas tecidas”, como já dissemos, que tapeçarias propriamente ditas... As formas coloridas que criamos são cada vez tecidas com materiais diferentes e cada nova criação é o resultado de uma solução técnica que discutimos em conjunto... Temos gosto de debater com arquitetos e decoradores inteligentes, a fim de adequar cada trabalho ao ambiente onde se localizará, e também entra em questão a escolha das fibras, segundo critérios de cor, material a utilizar e duração... E quantos críticos estrangeiros de nomeada, por exemplo, não considera, o nosso trabalho como essencialmente brasileiro?
Nicola de levanta, comenta o Leilão de Arte promovido pela Bolsa de Arte, do Rio, aqui em São Paulo, na noite anterior. Ao contrário de Douchez, ele participa da vida noturna da cidade, vai a exposições, cinemas e teatros. Acredita que suas tapeçarias se relacionam com as de Douchez como os trabalhos cubistas de Bracque e de Picasso: semelhantes apenas na superfície.
Apesar da fama do Ateliê Douchez-Nicola, eles assinam sempre cada tapeçaria em separado, como se fossem elas obras autônomas. Ambos criam, alias, diferentemente. Nicola parte de formas ao acaso, de tiras de feltro que trança laboriosa e descuidadamente muitas vezes. Douchez, parte mais de inspiração de tecidos populares, plantas, árvores, mas não gosta que seus trabalhos se identifiquem, após concluídos, com objetos. Suas obras vistas de mais longe, parecem peças maciças, formando desenhos geométricos, como notou o excelente repórter e crítico, Olney Kruse, do “Jornal da Tarde”.
Já Nicola usa quase sempre uma espécie de fundo, tecido com um tipo de corda colorida, trançada na frente para formar relevo. A verdade é que ambos trabalham juntos desde 1957, dentro dos mesmos conceitos e filosofia artística, com elogios de P. M. Bardi, Jayme Maurício, José Geral do Vieira, Geraldo Ferraz, Lisseta Levy e outros nomes maiores da crítica brasileira e as estrangeiras também, como críticos franceses, alemães, italianos e, entre tantos, o famoso Jorge Crespo de la Senna, do “Jornal Novidades do México”.
Nicola:
– A arte brasileira atual está fundamentada em notáveis esforços já feitos, como a Semana de 22, vários movimentos de expressão artística, aas Bienais, etc.... Ela está em pleno desenvolvimento e nosso ambiente cultural floresce dia a dia, com uma maior, também, integração entre os artistas e o público culto e investidor... Aparecem jovens artistas como Tuneau, Juarez Magnos, Espíndola, ao lado de mestres como Grassman, Bonadei e Volpi, entre outros... As bolsas de arte, os leilões, as galerias, o trabalho dos “marchands” é salutar, estabelecem ordem ao caos artístico, e propiciam um comércio salutar e digno, em todos os centros... Sim damos aos jovens, que tenham autêntica vocação artística, mas não gostamos de “chaleirar” senhoras ditas da sociedade que desejam ingressar num aprendizado fútil da tapeçaria... Percorremos um caminho longo e difícil, estamos agora apresentando a São Paulo e ao país essa nova arte nossa, autêntica: tapetes em três dimensões ou, quem quiser, tapeçarias tridimensionais, enfim, as “formas tecidas”.
Douchez está fazendo que sim com a cabeça, termina dizendo que modela a paisagem como modela a lã... A arte da tapeçaria floresce no Brasil, está inclusive entre a pintura dúctil e a escultura rígida... Gobelin, Aubusson, pertencem ao passado... Jayme Maurício notara a extraordinária multiplicidade de efeitos espaciais de suas tapeçarias em recente mostra no Rio...
A Igreja do Coração de Jesus bate 11 horas na Barra Funda. E é agora Nicola quem completa incisivo e fluente, enquanto caminha pelo longo corredor florido até a rua trepidante de caminhões, ônibus e buzinas:
– A obra tecida deve modelar o espaço numa forma multidimensional. A fibra e o tecido possuem um volume com qualidades próprias de tensão, elasticidade, comportamento, enfim: um lugar certo no espaço... Quero que a minha obra seja cor, ritmo, calor. A parede é obstáculo, limitação. Mas, através da tapeçaria, torna-se presença, alma que fala à outra alma.
Jacques Douchez nasceu em Macon, França, 1921. Iniciou estudos de pintura em Pris em 1942. Viajou para o Brasil em 1947, fixando-se em São Paulo. Aqui, aperfeiçoou-se com Samson Flexor e participou do Ateliê Abstração a partir de 1953. Em 1957 associou-se a Norberto Nicola para criar o Atelier Douchez-Nicola, passando ambos a dedicar-se exclusivamente à tapeçaria. Mora num sítio, km 51 da BR-2 (Rodovia São Paulo – Curitiba).
Norberto Nicola nasceu em São Paulo em 1930. Além do Ateliê Abstração, onde iniciou nos estudos de pintura, frequentou o Curso de Formação de Professores de Desenho da Fundação “Armando Álvares Penteado”. Como pintor, ganhou vários prémios seguidos nos Salões Paulista de Arte Moderna de 1956 a 1960. Nesse ano, ele e Douchez viajaram para a Europa, visitando centros tapeceiros, inclusive Aubusson. Em 1962, ambos deram um curso teórico e prático de tapeçaria na Escola Nacional de Belas-Artes de Lima, Peru. Em 1966, numa segunda fase do Ateliê Douchez-Nicola, os artistas iniciam pesquisas sobre as possiblidades tridimensionais da fibra tecida. Havia de ser a fase atual das “Formas Tecidas”.
Douchez e Niciola realizaram, entre 1960 e 1972 cerca de 30 exposições individuais e coletivas em São Paulo, Rio de Janeiro, Londres, Viena, Punta del Este, Córdoba, Paris, Osaca, Medelin, Ingelheim (Alemanha), Montevidéu, Lima, México, Washington e Brasília. Ganharam nos últimos anos vários prêmios nos Salões Paulista de Arte Moderna, Salão Nacional de Arte Moderna, Bienal de Punta del Este e Bienal de Córdoba. Na XI Bienal de São Paulo tiveram Sala Especial. O Ateliê Douchez-Nicola funciona à Alameda Glete, 691, onde também reside Norberto Nicola.
21/5/72.
AS “FORMAS TECIDAS” QUE ABSORVEM O ESPAÇO
...As “formas tecidas” de Douchez têm, na adoção de planos superpostos, qualquer afinidade com a escultura. Através de fendas abertas na superfície, vislumbra-se a ensombrada, subjacente e misteriosa riqueza de outras tramas recônditas. Mas perduram sempre a “souplesse”, a morbidez da lã e dos outros fios empregados. E pendem, pendem – porque o pender é próprio da tapeçaria. À maneira de Braque, Douchez se revela, assim, a um só tempo, um clássico e um inovador. Em clássico, pelo vigilante sentido de equilíbrio, da adequação e da pertinência; e um inovador, pela recusa à permanência dentro dos moldes estereotipados, o poder da invenção, a força criadora, o afã cm que busca insuspeitados caminhos para uma arte milenar. – Paulo Mendes de Almeida (no Catálogo da XI Bienal de São Paulo).
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O alto nível da tapeçaria contemporânea foi alcançado, sem dúvida, pelos artistas poloneses e iugoslavos, cujas obras estão em permanente evolução. Com esse espírito de pesquisa, de indagação, é que deve ser encarada a obra de Norberto Nicola... Pela inerente elasticidade, a forma tecida absorve o espaço; ocupa-o, sem dominá-lo, não o violenta – abraça-o... A arte de Norberto Nicola está no ápice: universal na linguagem tem irredutível força de comunicação. Generosa e vibrante nos seus contornos, ritmos e cores, sua tapeçaria enlaça o espaço com tanta segurança, que se nos parece que o artista chegou à realização completa... Porém, partindo das ricas experiências presentes, Nicola, por cento, conquistará mais e outras novas formas, porque ele “não procura; encontra”! – Lisetta Levi – Catálogo de XI Bienal de São Paulo)
...as formas fixadas por Norberto Nicola dão às tapeçarias que realiza um mistério lírico admirável dentro de uma técnica de grande qualidade e máxima autenticidade. – E. Di Cavalcanti.
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