A tarde vem caindo, garoenta e Noêmia Mourão – a tímida menina de azul ou a bela feiticeira de preto? – vem chegando à “Cosme Velho”. É o vernissage de sua exposição de desenhos, óleos e tapeçarias inspiradas na arte plumária de nossos índios. Noêmia, chamada de “A Debrezinha” há alguns anos por Chateaubriand, continua achando que em arte ainda temos muito a aprender com nossos indígenas.
– O livro que ilustrei, “Arte Plumária e Máscaras de Danças dos Índios Brasileiros”, saiu durante a Bienal, com financiamento dos amigos do Bradesco. Minhas tapeçarias, gênero a que me dedico ultimamente, são inspiradas nos adornos de 25 tribos indígenas, fontes inesgotáveis para um artista.
– Você mudou também a sua temática, dos óleos e desenhos?
– Não, essa continua mais ou menos igual; rostos, flores, moças, a mesma suavidade de mocinha tímida na pintura, já citada por Geraldo Ferraz.
– Tem trabalhado muito?
– Sim e não; continuo contemplativa, preguiçosa, viajante, adorando ficar em casa com meus livros e discos. Só trabalho quando vem uma vontade férrea.
– E Paris?
– Continuo fiel a Paria, à família picassiana, da qual me honro de fazer parte, à inspiração temática de Marie Laurencin, suas cores suaves, delicadas, sensíveis, graciosas e leves.
– Sua cidade, Bragança, exerceu influência em sua arte?
– Não, nunca, não sou uma interiorana e sim uma artista – sem desdouro – que buscou marcar a sensibilidade de sua arte nos anos que viveu em Paris e Nova Iorque.
– E Di Cavalcanti, que influência teve em sua obra?
– Enorme, como pintor e como homem. A partir do encontro com a minha vocação de artista, ele me orientou e me mostrou que o artista deve ser independente e verdadeiro, sem deixar a pesquisa e a criação autênticas.
Noêmia gosta de falar de Di. Lê sua última entrevista aqui mesma “A Tribuna”. Esclarece melhor:
– Como artista, Di é um pintor forte, colorido, brasileiro acima de tudo. Como figura humana é um companheirão, amigo fraterno, inteligentíssimo. E se posso fazer uma confidência, digo que talvez tenha sido eu a única mulher da vida dele e, mais ainda, conforme me têm dito alguns amigos: – Em todas as mulheres que tem tido, Di procura amar sempre uma Noêmia.
– O que acha da arte de vanguarda?
– Não cultivo os ismos. Prefiro ficar fiel à minha arte, sempre. A arte concretista, a arte de vanguarda, a arte “pop” ou “op”, a arte eletrônica, etc. e tal, tudo é muito interessante, mas como experiência. Não acredito que fique, a não ser em pequena escala. Tem valor experimental, apenas. Todas as vezes que inovei, feri a minha sensibilidade, busquei caminhos inautênticos e regredi. Só sendo fiel a mim mesma é que tive o reconhecimento da crítica e do público.
César Luís Pires de Mello, 42 anos, neto de Washington Luís, arquiteto (e com Artur Otávio de Camargo Pacheco, o proprietário da “Cosme Velho”), leva Noêmia à inauguração da Mostra “Panorama da Arte Atual Brasileira” (desenho e gravura) no Museu de Arte Moderna.
Um crítico presente olha bem seus desenhos a nanquim e acha que ela é “uma herdeira de Renoir”. Ela sorri. Passam salgadinhos, reusa. Está de regime, só faz refeições maiores com suas amigas de sempre, Yolanda Penteado e Moussia Pinto Alves. Muitas vezes parte com elas para aloucadas viagens – Bahia, Minas e Parati.
Delmiro Gonçalves aparece, diz que Noêmia capta em seus desenhos, em suas cerâmicas, em seus óleos e agora em sua tapeçaria, com “a agudeza de sua sensibilidade, todos os ritmos, as linhas e as cores suaves da vida”.
Chega, sempre pontualmente atrasado, como de hábito, um dos bons amigos de Noêmia: Francisco Luís Almeida Salles. Chamado a opinar, relembra Vinicius de Moraes:
– Vi Noêmia pela primeira vez em Paris, quando ela era quase menina. Distraída rabiscando um pedaço de papel. Apresentou de repente um retrato meu. Uma coisa tão rápida e tão espontânea, ao mesmo tempo com tanto caráter local. Olhei Noêmia, admirado: lá estava ela ausente, vagamente imparticipante, perfeitamente configurada no tipo exótico que tem de brasileiro e de oriental. Como se não fosse nada.
Ela sorri, tímida, essa menina azul-gigante da nossa pintura.
Noêmia, você está tão linda quanto sua exposição.
Tão linda, diríamos nós, como a sinhazinha de “A Rosa da Rosa da Rosa”. Ou do quadro tão azul: “A Mulher de Um Dia”.
Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 27/6/1971.
A CRÍTICA E O PERSONAGEM
E esse orbe intimista de Noêmia é especialmente paulista e universal, decorrente de educação, meio, tradição, sortilégio e disponibilidade. JOSÉ GERALDO VIEIRA.
O refinamento artístico de Noêmia tem raízes profundas na tradição de nosso povo... ANTONIO BENTO
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A base da arte de Noêmia é mesmo o desenho. Atrás de todo quadro de Noêmia, sente-se vibrar a armadura do traço, assim como, sob sua elegante e aparente frouxeza, uma construção vigorosa, frutos tanto da vontade e de disposições deliberadamente entretidas como de dons naturais por parte da artista, ao mesmo tempo hábil e emotiva, que Noêmia è antes de tudo. ROBERTO ALVIM CORREA.
Vinícius de Moraes diz que os quadros de Noêmia nos transmitem uma sensação de leveza esvoaçante – está bem dito, isto, poeta. Os seus cinzas. Rosas e azuis são mitro gabados. Pintora de visão fresca e espontânea... ingenuidade... encanto... suavidade... poética... feminilidade... pureza. MOACYR WERNEK DE CASTRO
O forte da arte de Noêmia não é a força, mas precisadamente a delicadeza... Noêmia é a pintura da humanidade leve, feminina e ágil... Esse reencontro de Noêmia com o público de Soa Paulo, que sempre a admirou, ficará certamente gravado como um dos fatos culturais da vida da cidade. PAULO MENDES DE ALMEIDA
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Noêmia é a menina vestida de azul da pintura brasileira. LUIZ MARTINS
De qual jornal, dia, mês e ano foi retirado esse trecho "A base da arte de Noêmia é mesmo o desenho. Atrás de todo quadro de Noêmia, sente-se vibrar a armadura do traço, assim como, sob sua elegante e aparente frouxeza, uma construção vigorosa, frutos tanto da vontade e de disposições deliberadamente entretidas como de dons naturais por parte da artista, ao mesmo tempo hábil e emotiva, que Noêmia è antes de tudo. ROBERTO ALVIM CORREA. " Gostaria de saber para fins de pesquisa mesmo. Desde já agradeço.
ResponderExcluirTodos os textos que constam no livro "Artes Reportagem" foram publicados originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos. A reportagem sobre Noêmia foi publicada em "A Tribuna" em 27/6/1971. Já os comentários publicados no final da reportagem foram recolhidos pelo autor do texto, o jornalista Luiz Ernesto Kawall, em conversas pessoais com cada um dos citados críticos de arte.
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