segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

CÍCERO DIAS


Considero-me realizado, sim... Carrego comigo pelo mundo a fora as minhas origens, os velhos troncos brasileiros, a família de senhores de engenho... São raízes sólidas, agente viaja a vida inteira, vive fora, mas as primeiras impressões da terra são as que ficam, marcando nosso trabalho, para sempre... Nem 20 anos de Paris conseguiram apagar da minha memória as minhas origens, as cores, as paisagens, as frutas, a luminosidade do meu Pernambuco... Eu vivo sempre intensamente cada tema da minha pintura... Eu seria sempre um pintor à procura de aventuras... Nós todos somos conduzidos toda a vida por uma aventura, onde vamos chegar, não sei... Sei viver, apenas, a minha aventura plástica... Nunca a abandonarei, ela, se quiser, que me abandone. 

Cícero e Raimonde já tomaram o café no pacato Cá D’Oro, na Basílio da Gama, um bom refúgio para a agitação de São Paulo. A dica foi de um amigo fraterno do casal: Di Cavalcanti. Cícero não esconde, debaixo do vistoso robe-de-chambre francês, as origens arquétipas o sertão nordestino: o sotaque carregado, pele curtida de sol – também, a travessia para o Brasil foi de navio, 20 dias bestando ao sol – cavaleiro andante e falante, forte e rijo, disposto e proposto, só os cabelos e o bigode grisalhos, aparentando os 64 anos que tem. Raimonde tem um leve sorriso para o rumor caudal de Cícero, já se acostumou assim. Conheceram-se em 40/41 em Paris. O casamento resultou feliz, “até agora”, Cícero brinca, ri, jovial. 

– Faço arte pela arte... Nunca fiz arte mercantil... Nós somos conduzidos por uma aventura... Onde vamos chegar, não sei. Minha pintura parte do racional para o universal. Acredito que a arte brasileira poderia ter esse ponto de partida... Identifiquei-me com certos movimentos de pintura, por exemplo, com o surrealismo, porque nele senti a sua grande e profunda libertação, só comparada ao movimento romântico que abalou os cânones da velha civilização... Depois da guerra de 39, fiz parte do grupo dos abstratos de Paris, que criaram um movimento de muita importância, para enfrentar aquele momento mundial que nos parecia crucial... Já fiz colagens, pintura em porcelana e estamparia... A minha pintura atual não tem mais os matizes do surrealismo nem as violências da época do abstracionismo, só em suas cores fortes... As fórmulas se sucedem com tal rigidez, que o que se afirma hoje, nega-se amanhã... Surrealismo, cubismo, abstracionismo, tudo mudou, mas, evidente, gosto do surrealismo, gosto do cubismo, como pontos de partida da arte contemporânea. 

Raimonde conseguiu discar para Malvina Gelleni – a vistosa e despachada proprietária da “Galeria Portal”, onde Cícero Dias expõe 34 óleos recentes. Cícero reclama do cinzento céu paulista, o sol não aparece, as pobres flores da janela estão encharcadas da garoa besta, “afinal, já é ou não o verão em São Paulo?”. 

– A pintura brasileira atual tem projeção internacional... Os artistas nossos conseguem, sim, expor em Paris, e isso já é um começo, se não for uma glória... Aqui eu não vinha há três anos. Encontrei uma arte mais adulta, os jovens em plena efervescência criativa. O público interessado no movimento da arte e, o que também é importante, adquirindo cada vez mais... Vejo que caminhamos para uma arte de categoria maior, num futuro não muito remoto... Não vi a Pré-Bienal, por isso não posso falar de cadeira sobre os novos valores, os múltiplos, as novas fórmulas cinéticas e outras... Lembro, contudo, sem ser professoral, que tudo, no fundo, é uma resposta dinâmica à tecnologia moderna, mas também esta progride e avança, superando tudo... É bom chocar, como chocou Picasso a seu tempo,, mas a arte sofre sempre os males e os benefícios que a vida moderna produz... Os movimentos se sucedem numa cadência tal, cheios de afirmações e negações que se tornam frágeis, sem base filosófica, humana, social ou mesmo cultural. 
Painel de Cícero Dias no Palais des Beaux-Arts

– Quais as influências maiores dos modernistas 
– Picasso e outros em sua obra? 

– Mais de ordem psicológica que plástica. 

– Quais a fontes de seu lirismo? 

– Proust explica a existência de um mundo interior e anterior a nós mesmos 

– Prefere seus óleos ou murais? 

– Todos os dois são válidos porque o espírito da obra não está na técnica ou dimensão, mas na sua mensagem. 

– Qual a parte que tem representado, em sua vida, amigos como Picasso, Di, Léger, Eluard, tantos outros?

– São, todos, parte integrante da minha obra e do meu mundo, tanto é que já fui personagem de romance e de poesia. Cícero conta coisas curiosas, histórias da guerra da Europa, andanças no interior do Brasil – primeiro pintor a expor no interior brasileiro – seu cotidiano em Montparnasse, onde tem o apartamento – sai conversando pelos cafés, não pinta muito, quando começa, contudo, faz 3, 4, 5 quadros duma vez só. E todos já têm compradores certos, a preços iguais aos daqui, 3 a 17 mil cruzeiros. Fala saudosamente de sua filha Silvia, casada. Mora em Paris, é estudante universitária. Ela foi batizada por Picasso. A amizade entre ambos continua (o espanhol teve seu telefone durante 12 anos, em nome do amigo brasileiro), só que agora Picasso mora mais isolado em “Notre-Dame-de Vie”, no sul da França. Fica mais difícil vê-lo. Cícero Dias está anunciando que vai sair pelo Brasil afora, de carro, com Rubem Braga: Rubem escreve e ele faz desenhos, alguma coisa como um livro bem brasileiro deve sair da aventura. Da nova aventura de Cícero Dias, o pernambucano magrinho que conquistou Paris, Capital do Mundo, sem deixar nem esquecer suas profundezas regionais e brasileiras. 

Cícero está pronto para descer. O elevador chega ao térreo, Cícero é o último a sair. Raymonde está ganhando uma rosa vermelha daquele imperador de cara gorda, bonachão e roliço, jovial e sarcástico, que os espera para o almoço. O velho amigo de ontem e de hoje, Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Mello. O Di, o velho Di velho-de-guerra. 

8-10-72. 

LIBERDADE E GUERNICA 
A amizade de Cícero Dias com os expoentes do mundo artístico e intelectual europeu deu-lhe oportunidade de realizar duas missões importantes. Em 1939, foi quem levou de Paris para Lisboa o original do poema “Liberté”, de seu amigo Paulo Eluarde, que constituiu a primeira manifestação da intelectualidade francesa de resistência à dominação nazi. O poema foi, depois, enviado a Londres e impresso em milhares de volantes que os aviões da RAF distribuíram sobre a França, para incentivar a resistência contra os alemães. A segunda missão foi ter conseguido que a tela “Guernica”, famosa obra sobre os horrores da guerra Civil Espanhola – de seu também amigo íntimo Picasso, viesse para ser exposta em uma das primeiras bienais de São Paulo. ”Picasso não queria que ela saísse de jeito nenhum do M.A.M. de Nova Iorque”, lembra, ele. – GERALDO FERRAZ – O Estado de São Paulo, 1970. 

Cícero Dias é uma das minhas grandes admirações do desenho nacional. Na verdade, eu considero o Cícero Dias aquarelista uma das contribuições mais originais que apresentamos nas artes plásticas contemporâneas. MÁRIO DE ANDRADE – “Arquivos”, Recife, 1944. 

Cícero acaba de expor em São Paulo e entusiasmou-me. Julgo-o o maior pintor brasileiro de todos os tempos. “Sim, o maior, digo e repito”. E ninguém poderá imaginar que estou falando isso por camaradagem, uma vez que as minhas relações com Cícero são geladas. OSWALD DE ANDRADE – Jornal das Letras, 1952.

Cícero Dias nos deu uma das obras mais altas pela concepção e pelo rigor estrutural da pintura moderna brasileira. MÁRIO PEDROSA – Correio da Manhã, 1952. 

Sempre admirei a pintura de Cícero Dias. Sou mesmo um dos seus primeiros admiradores e nunca neguei o grande lirismo de seus quadros que tão bem traduzem o Nordeste – a vida terrena e poética de velhos engenhos de Pernambuco. Cícero Dias e Gilberto Freyre valorizaram, numa mesma época, o tema dos canaviais e bosques misteriosos da zona do brejo nordestino. No Rio de Janeiro, quando Cícero Dias apareceu como pintor, éramos seus amigos: Eu, Murilo Mendes, Antônio Bento, Ismael Nery. Guignard, Mário Pedrosa, Octávio Tarquínio, Gastão Cruls, os mais íntimos, uma espécie de legião combatente gritando por toda a parte o novo valor da pintura brasileira. O valor da obra de Cícero Dias perdura límpido e espontâneo. Ele é um artista acima desse sobremundo de fórmulas esdrúxulas de um modernismo de tecnologia balofa. Cícero Dias observa a natureza com olhos sonhadores, continua um poeta, pintor absolutamente nacional. E. DI CAVALVANTI – Catálogo “Portal”, 1972.

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