“Nuvens voam nos céus como bandos de garças
Artista boêmio, o sol mescla na cordilheira
pinceladas esparsas, de ouro fosco...”
Ia descendo a minha baratinha Citroen a serra de Ubatuba pensando nos versos preciosos de Menotti Del Picchia, no imortal “Juca Mulato”. A mata verde-garrafa estava mais densa do que nunca no caminho histórico dos tropeiros. Mas naqueles idos nem tudo eram rosas na viagem, via Taubaté, de 6 horas até o litoral norte.
O motor do carro francês enguiçou e eu fiquei na Serra do Mar, ali, aguardando um auxílio terreno, terráqueo, divino, o que fosse. Tudo isso veio na forma de uma loira de voz doce, olhar firme, maneiras gentis.
– Pra onde vai?
– Ubatuba
– Carona, dou: sobe.
Era além de tudo energética, guiava bem naquelas curvas difíceis da estrada imperial.
– Vai conhecer a minha casa, nas Toninhas. Esse aqui é o meu marido.
– Prazer.
– Ele estava acidentado na estrada. Pensei que poderia almoçar conosco. Depois jogamos pôquer um pouco – Jorge olhou pelo terraço panorâmico o verde-azul do mar.
– Esta casa era do meu pai. Deixou de herança. Eu e a Cidinha estamos reformando.
Contou que passavam o fim de semana ali. Nestes dias, tinha ficado mais, fazia um trabalho científico para o Instituto Oceanográfico.
Durante o almoço, reparei que a Cidinha+ tinha um perfil da Grace Kelly e lábios delicados muito sensuais. Falava de seus estudos nas áreas de Jung e Freud. Na sala, o som glamoroso de Glenn Miller, uísque importado, frutos do mar ao vinho português.
– Vamos ao pôquer.
– De três?
– Que é que tem? Nós três, sim.
Jorge blefava, apostava, ganhava. Cidinha deixava-se perder. Evidente que estava interessada em mim. E eu nela, a loirinha da serra – batemos os joelhos algumas vezes, tocamos nas mãos ao apanhar as fichas. Tinha a mão aconchegante e quente das mulheres amorosas. Perdi todas, arrisquei numa quadra, Jorge fez flash. Fora, a chuva começou a apertar e o azul da Serra do Mar até Paraty já se acinzentava.
– Vou embora.
– Não vá ainda. O Jorge leva você depois. Não quer ficar, dormir aqui?
– Não, preciso cuidar do Citroen. Tem gente me esperando no hotel.
– Então volte, volte sábado. Gostamos de você... querido.
Aquela mulher me deu dois beijos na face, senti o úmido (e o bafo) do amor. Voltei sim, uma, duas, três vezes, semanas, um ano. A Cidinha ia me buscar no Tenório, ou o Jorge. A gente almoçava e jogava o sagrado pôquer. Eu perdia todas as vezes. Estranho casal! Se entendiam, parece, de cama e mesa. Ele blefava, ela ganhava. Ela apostava, ele ganhava.
As cartas eram marcadas (ou trocadas). Eu me deliciava, porém, me consumia na paixão real pela Cidinha. Ela nem aí, embora aquela provocação com vestidos colantes, seios entrevistos, mãos tocadas, coxas juntadas debaixo da mesa... Uma vez passei os joelhos nos seus joelhos, forte, numa posse, e ela... ruboresceu! Nessa única vez ganhei o jogo, numa esperança.
Quando a nossa amizade a três fazia um ano, por aí, senti um presságio na descida da serra. A Bocaina estava majestática e estalava como um vulcão vomitando faíscas mágicas. Cidinha me recebeu atraente e bela como nunca, cheia de mistérios e perfumes.
– O Jorge? Foi ver o caseiro no Prumirim, doença em casa, depois compra as ostras na cidade pro nosso jantar. Pedi que trouxesse aquele vinho alemão que você gosta.
Na sala, a voz de Frank Sinatra em “Strangers in the night”. Sabia que eu adorava essa música que me atordoava e enchia o ar de sensualidade.
– E o nosso pôquer, vamos jogar?
– Vamos jogar.
– A dois, só?
– Sim, ou você não quer, amor?
– Que-ro, sim... que-ro.
Ali fomos juntando e trocando cartas, fichas, trincas, pernas, joelhos, lábios nos lábios. Ela falava baixinho pro mundo ouvir:
– Hoje é meu dia, amor. Você não vai perder, meu bem... Hoje, Felipe, é meu dia de graça, eu é que vou ganhar você. Eu serei sua, agora, sempre...
E assim foi... e foi assim nas Toninhas, no Tenório, em São Paulo, no Rio em lua-de-mel, os azares e sortes do coração.
Pobre de quem não acredita. O mundo é feito de achegas e afetos, carinho e amor, ilusões e dor, damas, reis e valetes, sorte no jogo, e no pôquer da vida. Tivemos três filhas bonitas e até hoje escutamos na casa das Toninhas, sabem o quê? Djavan, Chico, Elis genial, Gal, Isaurinha, Caymmy, Bethânia, Cartola, Paulinho da Viola. O mar das Toninhas é sempre verde e azulado, ás vezes é dourado de sol e o luar à noite sobe serra acima, nos contrafortes do sertão da Quina. O amor entre nos floresceu e transcendeu, olho no olho, gente-gente. Ela foi pra min o leãozinho bobo do Caetano. Somos felizes, hoje.
Notícia sobre o Jorge:
O Jorge morreu. Ele vinha voltando do Prumirim, naquele dia o carro derrapou, rodou na curva da praia Vermelha. Um pescador viu e avisou. O corpo só apareceu 15 dias depois. Tinha umas cartas no bolso do paletó. Reconheceram um “Ás” de paus, uma “dama” de copas, dilacerados e um “rei” de ouros perfeito. Vou ligar pra minha astróloga de plantão em São Paulo, a Maura, saber dos astrais do “rei de ouros”. O Rei de Ouros.
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