quinta-feira, 2 de julho de 2015

PRIMITIVOS EM ALTA

Crisaldo D’Assunção Morais, nascido no Recife, mora em São Paulo desde 1966; é relações públicas da Varig. Sua pintura ingênua tem três anos. Vende na Praça da República e numa galeria. Em seu apartamento nos Campos Elísios trata com Paulo Wladimir (Currais Novos, RN), Ivonaldo (Caruaru, PE), Elza (mineira radicada no Rio de Janeiro, ex-cabeleireira e ex-cantora) e Waltraud (filha de alemães) da exposição que proximamente farão na Alemanha, em Dusseldorf, na Galeria Zimmer. Chega-se ao grupo Mário Campello, que começou como primitivo folclórico e hoje forma entre os mestres da arte “naive” (ou fantástica?) em nosso país. 

Mário Schemberg destaca Aloísio, Mousinha, Pau d’Alho, Freitas, Álvaro Guerra e explica: 

O movimento artístico dos “naifs” e primitivistas brasileiros é reconhecidamente um dos mais pungentes. Vem despertando cada vez maior interesse nos centros mais importantes da cultura mundial, tanto pela riqueza como pelas suas características peculiares, que refletem tão admiravelmente no plano artístico inúmeros aspectos da vida nacional. São particularmente interessantes os “naifs” e primitivistas de tendências mágicas e fantásticas porque se relacionam com uma das correntes mais importantes da arte contemporânea

Tela de Mário Campello

Mário Schemberg, pernambucano, engenheiro eletricista, é físico de renome internacional. Crítico de artes plásticas e protetor dos primitivos, que o consideram seu amigo número 1 em São Paulo, afirma que as obras dos primitivos “dependem essencialmente pouco de elementos folclóricos, mesmo quando revelam influências de crenças ou lendas populares”. 

– Por outro lado, apresentam os temas míticos fundamentais numa linguagem saborosamente brasileira, como as lendas mitológicas e os contos da carochinha. 

Sofia Tassinari, pintora, ceramista e dona de galeria, vai levar 30 telas deles para Roma, Milão Capri, Munique e Paris, onde também vê o Salão de Outono. No ano passado fez roteiro igual e em Madrid, Lisboa e Paris o sucesso foi absoluto, com palavras muito elogiosas de vários críticos, entre eles Anatole Jakowsky, autor do “Dictionnaire International de Peinture Naif”. 

– Qualquer outro tipo de pintura não emociona a Europa; os primitivos, sim. E por uma razão muito simples: os modismos começaram lá. Há também outro aspecto: o primitivo parece, geralmente, um mau acadêmico. Vou levando, este ano, como da outra vez, pintura bem brasileira, de cores bem brasileiras, que agradam enormemente aos europeus. À frente deles, claro, a nossa maior “naif”, Iracema, cujo sucesso na Europa, principalmente em Paris, é espetacular – diz Sofia, entre mil telefonemas e compromissos. 

Tela de Iracema Arditi

Iracema  Arditi (1924/2006), está completando uma tela de tons azuis, a sua arte feérica de flores, borboletas e fundos de mares. Filha de calabreses, nasceu muito pobre, no Braz: 

 – Nós, os primitivos e “naifs”, temos sido aceitos com tantas reticências... Aqui não existe crítica especializada, apenas alguns simpatizantes. O Museu do Sol, que estou levantando na Vila Clementino, pretende reunir os melhores “naifs” do nosso país e de todo o mundo. Já fiz os primeiros contatos, acho que o inauguramos em janeiro. Faz uma pausa. Para Iracema, primitivos puros foram apenas os pintores rupestres. Hoje, só o pintor “naive” – e cita dos nossos, Elisa da Silveira, Grauben, Zé Inácio, Chico da Silva, Edelweiss, Eurydice Bressane, Neuton e Elza, como valores autênticos – faz “pintura pura”.

– É a pintura interior, da alma. É a pintura tropical, ingênua, autêntica. Os pintores “naifs” não abrem em encerram um ciclo novo: nós somos a própria permanência do homem diante do seu mundo e da natureza, uma recordação do Éden transposta para a cor e a forma, diz Iracema. 

Andarilhos - Isabel de Jesus

• No outro lado da cidade um americano não está tranquilo: é Alan Fischer, diretor da USIS, do consulado americano, outro amigo dos primitivos, recolhidos na Praça da República. Ele lá aparece dominicalmente com seus cabelos brancos e ar sempre jovial: 

– Os primitivos brasileiros são de “lascar”, fazem uma arte de rara beleza. Para mim, estão em nível tão alto como os melhores compositores da música popular brasileira. E eles são uma gente muito boa, isso para mim também conta muito. 

Fischer é pintor abstrato e tem algumas dúzias de telas de primitivos em sua casa. 

E Carlos von Schmidt, neto de austríacos, jornalista e diretor do Museu de Arte Brasileira, da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP – tem mais: 300. Por isso ele vai montar a Galeria Primitiva, no centro da cidade, para leilões, vendas, promoção exclusiva dos primitivos. A entrada é uma pintura popular, de rara beleza, de Ivonaldo. Von Schimidt vai também levar mais de 200 telas de primitivos nossos para os maiores centros de arte europeus. 

– Nossa arte primitiva foi sempre pichada, combatida, menosprezada. Geralmente considerada por pseudos-intelectuais como não-arte, porém sempre recebeu de intelectuais autênticos a atenção e o respeito. É óbvio. É lógico... Ela é um mundo fabuloso de formas, cores, luz e temas. 


Maria Auxiliadora está na Praça da república, muito retinta, ao lado da frágil Isabel de Jesus. Ambas ex-domésticas, agora artistas requisitadas. Maria pinta de dia e estuda à noite já foi considerada por um crítico de vanguarda como “quase pop”. Isabel está deixando a enfermagem, vive só de suas pinturas míticas e mágicas. Pinta também seus caranguejos surrealistas e monstros mitológicos em pedras. Waldomiro de Deus, o “pintor maldito”, expõe suas telas diabólicas em Paris e Israel. Elza dos Santos – aquelas das crianças de olhos grandes, dos rostos sofridos – também prepara telas para correr a Europa. Ivonaldo, ex-bancário, nasceu em Caruaru, está em São Paulo desde 1966, primitivo regionalista (com tons urbanos, da cidade grande), de grande porte, estuda inglês. 

• Mário Schemberg não tem mais onde pendurar primitivos em sua casa. E vê a permanente escalada deles com alegria: – Nossos primitivos estão começando a tirar passaporte. Daqui há pouco, na Praça da República, no Embu, nas galerias, nós, seus compradores e seus apreciadores, e os turistas, vamos ficar a ver navios. 

A Tribuna, 10 de outubro de 1971.

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