A Bienal é um marco de paz e de confraternização entre os povos.
– O que acha da representação brasileira nesta Bienal?
– Muito boa, o resultado assimilado dos movimentos das outras.
– E o público, como tem reagido às Bienais?
– Muito bem, aumenta de ano para ano.
– E os jovens?
– É para eles, principalmente, que as bienais são feitas. Tem colégios e universidades que comparecem em peso às Bienais.
– Vai deixar, afinal, depois de 20 anos, a presidência da Fundação Bienal?
– Cosa o fato... Os jornais me entenderam mal. Estou com 73 anos, poderia deixar para outro...
– Aposto que já pena na décima segunda Bienal...
– Sim, sim, sim... Talvez o Cícero Dias traga de Paris a retrospectiva do Kandinski... Bene, ciao.
Francisco Matarazzo Sobrinho corta a conversa. Roupas largas, óculos de aro de tartaruga, a famosa bengala, nó grande na gravata do termo cinza. Pega a volumosa pasta de couro, que carrega dia-inteiro por toda S. Paulo, sem esquecê-la em lugar algum, e dirige-se ao elevador. Ele mora só, no 22º andar dum prédio nobre na Avenida Paulista. Passa pelo telefone, lembra-se de um recado para um amigo. Uma das manias de Ciccillo – onde quer que vá, procura o telefone, tira um caderninho do bolso, liga para este ou aquele, dá ordens – às vezes não dá recado algum, mas telefonou.
– O melhor patrão que tive na minha vida. Estou com o “seu” Matarazzo há 40 anos. Tenho setenta, não vou deixá-lo nunca – é a camareira-governanta Luisa Golias quem fala. Ela cuida dele como se “Ciccillo” fosse casado com cinco mulheres. Também, já foi três vezes à Itália, como prêmio. “Ciccillo” acordou às 6 da manhã. Tomou chá e comeu duas maçãs. Leu os jornais matutinos principais de São Paulo. Às sete e meia já está vestido e de gravata, esperando o secretário, o Neco (Manoel Esteves da Cunha Júnior). Ele chega, “Ciccillo” repete uma velha pergunta, gosta de perguntar assim:
– Qual é o problema?
Na Metalúrgica Matarazzo, chega pontualmente às 8 e pouco. Apesar do “staff” ali organizado e a direção eficiente dos irmãos e dos sobrinhos, “Ciccillo” parece sempre um dos primeiros e mais pontuais “boys” da grande firma (a maior do Brasil, em produção de latas). Sobe ao 7º andar, vau saber as novidades e os problemas administrativos. Ouve e é ouvido. O respeito por aquele chefe simples e bom, capaz de dar sempre a melhor e mais elevada sugestão, é evidente. “Ciccillo” desce ao 5º andar, onde tem o gabinete de empresário. Agora, está pendurado de novo ao telefone.
– José Humberto, quero que você convide todos os críticos da Bienal para um almoço, amanhã lá em casa. Todos, hein!?
Os almoços de “Ciccillo”... Ele sempre os organiza por grupos de amigos, de pessoas com interesses comuns: de literatos, de artistas, de arquitetos, do pessoal de Ubatuba, dos amigos. Com a turma de Luiz Lopes Coelho o cardápio é sempre fuzzili, cabrito e vinho tinto “Vezuvino”, de Castelabate, terra da família Matarazzo. Ele ri à larga das brincadeiras dos amigos... que fazem troça de sua deselegância folgazã, da tela acadêmica da sala do almoço... dos seus cochilos quando assiste a uma palestra chata... Aos sábados, “Ciccillo” almoça rigorosamente com Yan de Almeida Prado, na casa deste, e gosta de encontrar outros amigos fraternos, como Frei Benevenuto de Santa Cruz, Maurício Verdier, tantos outros, milhares. Mas, sempre, de regime, à base da maçãzinha. E nunca se senta à mesa onde haja 13 pessoas.
No Brás, apitam as fábricas, são 11 horas. Este ano é ano da Bienal, ele apanha seu Dodge, senta-se ao lado do motorista (um velho hábito) e toca para o Ibirapuera. Cumprimenta os porteiros, fala com Geraldo Ferraz, responde a Di Prete, atende Edoardo Bizzari. Vai direto à telefonista:
– Alguém telefonou?
Na sala de Mário Wilches, jornalista que colocou na direção técnica, este ano, da Bienal, inteira-se dos fatos acontecidos, dos maiores problemas. Dá respostas e ordens. Não hesite, pede explicações. Com Heitor Garcia, diretor administrativo, que está com ele desde a primeira Bienal, o mesmo. Quer saber se os quadros do Peru, da Venezuela, tiveram algum problema com a alfândega.
– O “seu” Matarazzo é uma criatura única, não briga com ninguém, atende a todos indistintamente, dor porteiro ao embaixador, diz Heitor. Não humilha e não deixa ninguém à sua frente ser humilhado. Ajuda anonimamente a centenas de pessoas. Não gosta de recepções, nem de bota-foras, nem de homenagens. Atribui sempre aos outros o sucesso que alcança. Mas, também, passa por cima de tudo, das próprias conveniências, da família, dos amigos, de tudo, pela Bienal.
“Ciccillo” está ouvindo pacientemente uma jovem. É do Mackenzie, quer passe-livre para todos os mackenzistas nesta Bienal. “Claro, a bienal é de vocês”. Lá esta a Baby, sua sobrinha, para dar a permanente. Nesta Bienal, o custo elevou-se a quase um bilhão de cruzeiros velhos. Os governos federal e estadual não chegaram aos 700 milhões de auxílio. O resto saiu generosamente do bolso de Francisco Matarazzo Sobrinho.
É “Ciccillo” telefonando:
– O ministro Passarinho confirmou a presença? Ótimo. Ótimo. Va bene.
Às seis, seis e meia, a volta à casa. Lê agora dois matutinos do Rio. Na mesa, livros sobre todos os assuntos. Sua biblioteca foi doada à Universidade – mais de 10 mil volumes – mas forma outra – livros de ciência espacial, artes visuais, literatura, arquitetura, de bichos e pássaros, especialmente.
Quando prefeito de Ubatuba, onde fez uma administração revolucionária em todos os sentidos, quis organizar o projeto aviário do Brasil. Tem todos os livros, mais de 200, em várias línguas, sobre S. Francisco de Assis. Tem adoração pelo santo de seu nome. Acima de sua cama, uma imagem popular, de Cristo, de artista anônimo, parecendo arte “pop”. Num canto da mesa, o jogo de paciência – que faz sozinho, nos fins de semana – mas, se a campainha toca, é um amigo, guarda-o, depressa, na gaveta.
São, agora, sete da noite, e “Ciccillo” comeu um lanche rápido – mais duas maçãs, é claro. Saiu até a galeria “Azulão”, quer prestigiar Sofia Tassinari, que organizou a Noite da Paleta, beneficente. Cumprimenta todos, já quer sair. Vira-se para a amiga íntima:
– Vamos ao cinema? Tem filme de cow-boy.
No cinema diverte-se se tem muito índio e há muita flechada. Ri e descansa, então, o formidável realizador das Bienais, do TBC, da Vera Cruz, da Cinemateca, do IV Centenário, do Museu de Arte Contemporânea, do Museu de Arte Moderna (a intenção dele era fundar uma galeria de arte moderna, em S. Paulo, em 1949, mas Rockfeller doou uns quadros, o assunto precipitou-se, então “Ciccillo”, Tarsila, Nonê e Almeida Salles criaram o Museu de Arte Moderna – uma história a ser contada devidamente, ainda).
Nos fins de semana, visita os amigos, não perde missa na Capela do velho Cemitério da Consolação. Às vezes vai ver aquela freira que o orienta nas inquietações do espírito. Afinal, “Ciccillo” é muito religioso. Às 11 da noite está deitado, lê uns 40 minutos. Durante o dia colecionou muitos recortes – leva uma tesourinha na pasta preta – é hora de saber de tudo. Um inquieto, sempre, um reformador, todos os dias, um insatisfeito consigo próprio, por isso tão criador, tão tímido em ação permanente, um franciscano no meio social, o d’Artagnan do bom combate, o amigo que se dá por inteiro aos amigos, o experiente industrial, o brasileiro – com Pelé – mais conhecido no exterior, embaixador e ministro de todas as artes. Dorme ele agora, afinal. Francisco Matarazzo Sobrinho. O bom e franciscano “Ciccillo”.
As bienais segundo seu criador
Fundado o Museu de Arte Moderna de São Paulo, tornava-se imperativo um encontro internacional periódico de Artes Plásticas em nossa Capital. A I Bienal é a concretização desse objetivo evidencia que São Paulo e o Brasil estão à altura de promover com êxito, dois em dois anos este Festival Internacional de Arte. É feliz coincidência o fato da I Bienal, inaugurada neste ano, permitir que a segunda se realize por ocasião do IV Centenário da Fundação da Cidade.
Desde o primeiro instante foi pressentida a ousadia do empreendimento, a necessidade de uma vasta colaboração, as dificuldades que teriam de ser vencidas e os erros inevitáveis de uma primeira experiência. Mas, na verdade, dada a compreensão dos Poderes Públicos e Privados, por uma grande conjunção de esforços por parte de todos que organizaram a exposição, por uma entusiasta colaboração dos artistas, intelectuais e jornalistas brasileiros, e dos governos das nações amigas que se fizeram representar, a efetivação da I Bienal foi além de qualquer expectativa.
Devemos, pois, em primeiro lugar, agradecer muito sinceramente o trabalho e a dedicada colaboração de todos aqueles que, desde o início, deram à I Bienal o melhor de seus esforços e de sua boa vontade. Do trabalho comum todos poderão verificar o resultado. Assim, tudo contribuiu para que, nesta primeira grande manifestação artística do Brasil, pudéssemos ter uma consciência maior e mais explícita dos valores artísticos nacionais em confronto com as grandes realizações artísticas de outros países.
Uma expressão do espírito humano só atinge seu ponto de plenitude – e para a arte, isto é da máxima importância – quando encontra projeção e eco, correspondência e compreensão em outros homens, povos. A ideia inspiradora e animadora de todo o esforço do Museu de Arte Moderna de S. Paulo consistiu em concorrer para que se realizasse em nosso meio essa expressiva manifestação de alta cordialidade humana.
(Francisco Matarazzo Sobrinho, “Apresentação”, catálogo da Bienal, out a dez de 1951).
Inscreve-se no pórtico desta Pré-Bienal de São Paulo. Primeiramente, o nosso agradecimento à presença dos artistas que do extremo sul ao extremo norte do Brasil deram sua adesão a estra idéia. Antes dessa experiência, nada foi feito que se parecesse com essa verdadeira mobilização nacional que tentamos. O panorama buscado através de todo o imenso território nacional está aqui, naturalmente oferecendo deficiências e falhas que foram principalmente nossas – pois não pudemos bater de porta em porta e levar nossa convocação todos os recantos. Nem ainda mais debater razões de ausência ou de indiferença à iniciativa, que por si só nos afigura bastante a despertar o interesse e a participação.
No entanto, temos o panorama, e se dos que deveriam compô-lo nem todos souberam que havia aqui um lugar para o seu trabalho, é com esse panorama que se nos oferece a oportunidade de uma tomada de contato com a realidade brasileira atual.
Esta oportunidade em nosso pensamento único e exclusivo visava a constituir um critério para a escolha da representação nacional à XI Bienal de São Paulo. Então, estamos no dever de receber esta contribuição, e procurar ardentemente através dela chegar a um resultado positivo, construtivo e relativamente justo. Todos os que concordaram em trabalhar nesta oportunidade não desejam outro prêmio para seu esforço, isenção e vigílias.
Aos governadores, os nossos agradecimentos pelo grande empenho em seus Estados a fim de que pudesse ser dado esse primeiro passo decisivo no campo da integração das artes visuais em nosso país.
Agradecemos ainda aos que, com seu conselho e sugestão, encaminharam muitos dos artistas que aqui se reúnem. Temos fé na causa que nos inspirou e tudo faremos para que chegue ao termo este trabalho comum que se situa acima de regionalismos e de restrições.
(Francisco Matarazzo Sobrinho, “Apresentação”, catálogo da Pré-Bienal de São Paulo, setembro-outubro de 1970).
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