sábado, 6 de dezembro de 2014

O CORDEL VIVE E REVIVE, RESISTENTE

O cordel é, antes de tudo, e euclideanamente, um forte. Vive, revive, sobrevivente, transcendente. No recente “Primeiro Encontro Nacional dos Poetas de Literatura de Cordel”, em Salvador, reunindo violeiros, repentistas, poetas populares e estudiosos foi dito e redito que não existem entidades e associações particulares ou oficiais, de âmbito regional ou estadual, que ajudem o cordel, que pode morrer. O cordel é o telúrico poético e o cantante sonoro da alma nordestina. Jornal do sertão, cultura popular e literatura de sobrevivência. 
O cordel, esse INPS da miséria gratificada na pancada da viola ensolarada e enluarada. No Encontro o objetivo dos cordelistas foi alcançado: aprovação dos estatutos da “Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel”, dirigida pelo poeta baiano Rodolfo Coelho Cavalcanti - que celebrou 30 anos de atividades de cancioneiro popular - e chamar a atenção nacional para a crítica situação do poeta popular brasileiro. 
O cordel vive, revive, sobrevive, persistente e emergente, pois. É o inconsciente coletivo sertanejo à espera de um Jung caboclo para que o interprete e o eleve ao status da sociologia universitária e da antropológica cultural. Veio de Portugal e da Espanha, foi e é vendido cavalgando um barbante - daí o seu nome cordel - e sua presença no Brasil é fenômeno extraordinário, desde que entre nós introduzido no século passado pela Livraria Garnier e pela tradição oral. 
O cordel é o sangue encardido da ignorância letrada e da inteligência espontânea do nordestino à espera deque os críticos, sociólogos e antropólogos aprofundem na sua sobrevivência arquetípica de um povo vivido e sofrido. Nos seus 80/90 anos de vivência e sobrevivência já produziu milhares de poesias, Abcs e pelejas populares, outros tantos folhetos, tão plenos de cantos e espantos, veio diluviano de criação, populário e vocabulário, temente e penitente do nosso sertão. 
Paulo Dantas, sertanejo curtido que o asfalto paulista não consome, acha que o cordel é a procura coletiva e ancestral de um deus-Deus, que o cabra sertanejo retado da peste procura nos rastros de uma cobra nas pedras, mandacarus e xiquexiques do Bom Jesus da Lapa chagada, na cabeça de um frade decepada no chão lúdico de Canudos, e que morrem, cobra e cabeça, na gemedeira sincopada e alegre da viola: ai, ai, ui, ui, ai, ai, ui, ui. 
O cordel, pois, sejam as histórias famosas como “A Donzela Teodora”, “A Imperatriz Porcina”, “A Chegada de Lampião ao Inferno”, “O Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Vai não Torna”, “História do Pavão Misterioso”, “até os atuais “Bebê Diabo apareceu em São Paulo”, “A Vida do Planeta Marte e os Discos Voadores”, “A Morte do Doutor Juscelino e a sua Chegada no Céu”, “O Sapo que desgraça o Corinthians”, “A Moça que Mordeu o Travesseiro pensando ser Roberto Carlos”, “O Trágico Romance de Doca e Ângela Diniz”, e milhares de outros cantores, vive, revive e sobrevive. 
No Pelourinho recauchutado, nas calçadas da Sé tumultuada, nos altos do Elevador Lacerda, onde o imortal Cuíca de Santo Amaro vendia sua produção folhetinesca e rocambolesca, qual um Jorge Amado do populário nacional. Está, pois, presente em Salvador, com a Associação Nacional dos Trovadores de Rodolfo Coelho Cavalcanti e tem até jornal, o “Brasil Poético”, órgão trovadoresco “a serviço dos trovadores populares e da cultura brasileira”. 
Junto ao busto na praça recém inaugurada “Catulo da Paixão Cearense”, outro dos cardeais nacionais da canção e da viola agalopada do nordeste. O cordel está no ativo Grêmio Brasileiro de Trovadores, de Clodoaldo Rodrigues, mas que não tem catalogação dos folhetos, nem biblioteca organizada, nem arquivo de xilogravuras à falta de um museu sempre pretendido, mas nunca alcançado, de literatura de cordel. Enquanto o Museu não vem - ou o Museu da Cultura Popular, em Brasília, Rio ou São Paulo, defendido no último congresso de Cultura, respectivamente, por Maria Luiza Carrazzone, Clarival Valadares e por este jornalista - o cordel vai se perdendo e se consumindo e virando folclores de subsistência. 
Rodolfo ainda trabalha febrilmente, escreve, imprime, edita e vende seus próprios folhetos, alma danada e penada, poeta popular e estafeta, secretário de ferro e defensor do cordel, com sua maleta cheia de contos medievais, estórias de louvação, versos do encantado, pelejas e abcs a difundir os folhetos em sua rede de todo o Brasil. 
O cordel vive e sobrevive, pois, apesar da falta de apoio oficial, nas folhetarias e agentes do todo o Nordeste, Recife, Olinda Juazeiro do Norte, Maceió, Belém, Natal, Teresina e Fortaleza. Nas grandes feiras do sertão, Feira de Santana, Campina Grande, Nazaré das Farinhas e Caruaru. Na “Literatura de Cordel, de José Bernardo da Silva, na Juazeiro do Ceará, onde o Padre Cícero, principalmente depois que virou estátua mais alta que o Cristo Redentor, continua benzedor e milagreiro verde-amarelo, devoção do sertão como o beato Antonio Conselheiro, o santo de Canudos. O cordel está nas folheterias e nas praças públicas do povo, como queria Castro Alves. Está na “A voz da poesia nordestina”, de José da Costa Leite, em Condado (PE), e na editora popular de Dila, em Caruaru, com suas prensas toscas de tipos e impressão manual a imprimir a manivela muda o sujo gráfico-poético da xilogravura imaginária, santeira e encarnada do artesão nordestino. 
Dila é poeta e gravador popular, impressor e delirante vocacional, intelectual e cantador. Não acredita na morte de Lampião e do Conselheiro; e suas visões - impressas em seus folhetos - são líricas e coloridas como as de um Fra Angélico florentino. Dila e J. Borges, Costa Leite, Mestre Noza (Inocêncio da Costa Nick, famoso antes na França que no Brasil), João Barros, Jerônimo Soares, Gilvan Somico, Newton Cavalcanti, Sérvulo Esmeraldo, Iaponi - estes quatro últimos saindo da gravura popular para a obra de arte mais erudita - são entre outros os maiores nomes da xilogravura nordestina. 
Alguns foram editados recentemente pela Galeria Ranulpho do Recife e retratados por estudo do crítico Roberto Pontual. Mas a xilogravura popular do cordel está abandonada e sem dono, os tacos se perdendo em meio às máquinas de impressão manual, lembrando os tempos medievais, quando as prensas tinham pé e toque. A universidade do Ceará guarda algumas centenas de tacos, e é só, eles se perdem nas lojas, folheterias, barracos, impressoras, tipografias do nordeste, cultura popular autêntica, apolínea e renascentista, crua e fantástica, gerada na ponta dos canivetes e das giletes. Num país de pouca memória, aí se vai uma poderosa e maravilhosa fonte de inspiração, do artesanato e da cultura popular emergente e transcendente. 
O cordel, pois, sobrevive, ao radinho de pinha e ao progresso dos incentivos; e vence, aos domingos, a aldeia global, ao avanço da máquina poderosa da televisão no agreste, à estrada asfaltada, à casemira sulina, ao arame farpado que cerca,agora, a grota funda onde morreu Lampião e o açude sudeneiro, à máquina de costura, ao carnê, ao facilitário bancário e aos baús da felicidade ou não. Ele resiste a tudo e todos, esse jornal do sertão transmitido de pai a filho, de geração a geração, essa literatura popular fonte e inspiração de um Ariano Suassuna, de um Guimarães Rosa, de um Cavalcante Proença, mestre cuiabano, rei e escritor, crítico nacionalista, que morreu general reformado, numa festa, com um copo na mão, e cujo filho, Ivan, segue sua trilha e já nos deu pela Imago uma “Ideologia do Cordel”, capaz de competir na editoração do cordel, com a Global Editora, a Vozes, a ECA-USPO, o patriarca Câmara Cascudo, a Fundação Casa de Ruy Barbosa e o Instituto Joaquim Nabuco. O cordel que vai de dois cruzeiros de mão em mão, rondó e redondilha, forró e cantoria, martela agalopado, repente, ABC, trova, disputa e muita peleja, que nisso o cego Aderaldo, o Fonseca, o Bandeira, o Limeira, o Formiga, o Ragaciano, o Dalmo, o Leonardo Mota, o Leandro Gomes de Barros foram, entre outros, imbatíveis. O cordel sobrevive até na São Paulo cruel e cosmopolita, nas andanças do Maxado Nordestino pelo Metrô e Rua Augusta, no Bar dos Repentistas do Brás, na estante da Livraria Brasiliense, entrincheirado nas cantorias de fim de semana na Praça da República, em Osasco, no ABC e nalgumas vilas dos confins palmerianos, que a Capital é a maior população nordestina do Brasil, depois do Nordeste. 
Eta cordel vivente e sobrevivente, endemoniado e de corpo fechado, capaz de vender 100, 150, 200 mil exemplares, com seus tremas da atualidade, histórias de Deus e do Diabo, mulher e cachaça - sempre com uma linha tradicionalista moralista, segundo os estudos do heróico e do messiânico da ideologia e da religiosidade de Luiz Santa Cruz, Luiz Beltrão, Sal Biderman, Renato Carneiro Campos, Raymond Cantel, Mark J. Curran, Alice Mitika Koshiyama, Mario Souto Maior e o incrível Orígenes Lessa, que deixou o feijão e os sonhos para juntar a maior coleção (cerca de 5 mil folhetos) de cordel catalogado do Brasil. O cordel que sobrevive nas coleções particulares e no teatro que às vezes - e, quantas vezes, formal e sem espontaneidade - se cordeliza no Rio e em S. Paulo. 
O cordel de João José da Silva, Manoel Caboclo da Silva, Manoel Camilo dos Santos, Abrão Batista, Jose Martins Atayde (e filhos), José Soares, Severino Milanês, Manuel de Almeida Filho, Minelvino Francisco da Silva, Erotildes Miranda dos Santos, José Pacheco, Aleixo Leite da Silva, Dadinho e Caboclinho, dupla de violeiros baianos, homenageados no “I Encontro Nacional de Poetas da Literatura de Cordel”, de Salvador. 
São os autores e cantadores - e há que se distinguir do autor da poesia, poeta popular, do cantador ou trovador ou repentista - de muito “best-seller” do sertão, com suas histórias e seus ciclos da utopia, do marido logrado, do demônio ativado, dos bichos que falam, do erótico e da obscenidade, dos exemplos ou maldições, do heroico ou fantástico, do amor e bravura, do cômico satírico, segundo classificação de Carlos Alberto Azevedo. 
O cordel vive, sobrevive, resiste e persiste, sim, apesar do imperialismo do cordel feito em S. Paulo, mais recheado e de capa envernizada, vendido mais barato nas feiras do Nordeste. O cordel resiste porque não é pobreza nem riqueza, mas é presente e futuro, dor e amor, estória medieval e História universal sagrada e profano. Jornal do sertão e inconsciente coletivo do nordestino, que sai e se expressa nas vozes capituladas e gemedeiras improvisadas. Literatura popular e até cultura espontânea - como a filosofia dos ditos de caminhão, dos riscadores de milagres, dos xingos, dos capitães de areia, dos jargões do futebol, das prisões, do morro e da favela. Anjo e diabo, messianismo e catequese, o cordel é menestrel, poesia e cantoria, gente carente, canto cantado e espanto encantado, provo sofrido e sobrevivido dançando sobre a pobreza limpa. 
O cordel é cantiga de cego e de catacego, que desconhece as durezas da madureza, os acidentes do trabalho, o talão da Loteria, o telex, a mala direta, o marketing, e, o telefone, e mais importante, Borges e sua biblioteca de Alexandria. O cordel jamais pode ser ambíguo, pois é valente e polivalente, clássico e trágico, tem o umbigo caído no chão e virado poeira coletiva no tempo e no espaço. Serve ao doido do sertão e ao neurótico da cidade grande, porque o cordel cura tudo, até dor de cotovelo, marido chifrudo, a vitória da Arena e a derrota do MDB. 
É receita e mesinha, uso e costume, ruído e pandeiro, comunicação do gibão e interação do violão, folclore áudio-escutado em circuito ao ar livre, nada fechado, liberto e democratizado. Deus e o Diabo, sem as ambiguidades e as genialidades rosianas’guimaroseanas. 
FOLHETIM, Folha de São Paulo, 20 de março de 1977.

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