terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Volpi


A Aracy Amaral e Walter Zanini,
Com quem aprendi, desde os tempos da Escola, os segredos das artes.
L.E.M.K. 


Volpi está pintando em seu ateliê, uma sala ampla nos fundos de sua casa no Cambuci, onde mora com Judite “desde os trinta”. Ele acordou às seis e meia, tomou um cafezinho simples só. Já faz seu cigarrinho de palha – fumo de Laranjal de Tietê, de Paço Fundo, comprados no bar da esquina ou ganho dos amigos. Vai pintar até cinco e meia da tarde.

Depois paro. Só pinto à luz do sol. No verão, ainda vou até as seis, seis e meia... 

De manhã e à tarde, trabalha como um operário. Prepara caprichosamente cada tela, de entretela de linho puro ou de linho cru, com gelatina de porco e gesso. O chassi de cada uma merece cuidados especiais, “para não entortar”. A moldura, cortada por uma serrinha manual, fabricada por ele mesmo, é quase imperceptível. As tintas são diluídas numa emulsão de verniz e ovo, numa infusão complicada, a chamada têmpera-ovo, em que são colocados os pigmentos importados ou por ele mesmo preparados. Estes foram, antes, decantados e ressecados ao sol. Tudo e misturado por fim. Os pigmentos são comprados no mercado, puros ou então preparados por Volpi – ele decanta terra, ferro, óxidos, ocres.

Óleo - 1948

– Não uso pigmentos industriais, que criam mofo, e que com o tempo as cores do quadro perdem a vida. Mas Volpi ainda vai pintar. Testa cada tinta. Se a cor se altera, joga tudo fora. Se as cores permanecem alguns dias bem fiéis, lá está Volpi colorindo com, pinceladas curtas e desordenadas, suas telas famosas. Ali estão as cores preferidas de um dos maiores pintores coloristas da pintura mundial: roxo-terra, verde-esmeralda, azul-de cerúleo, azul-ultramar, violeta-cobalto, vermelhos e amarelos-cádmio. Aí, entra o artista. Ele já fez estudos a carvão em papel, estudos vendidos atualmente em São Paulo. 

Se o quadro não “resolve”, pego outro; a pintura precisa “sair”... 

Volpi nasceu em Lucca, na Itália, em 1896. Veio para o Brasil com 18 meses. Seu pai era comerciante no Cambuci. Na Escola Italiana desse bairro aprendeu rudimentos de marcenaria, decoração e encadernação. Autodidata. Em 1911 começou a pintar murais decorativos e então, um pouco mais tarde, surgem as primeiras telas. 

Comprei há dias dois pequenos quadros meus, duas paisagens, por três mil cruzeiros cada. Tinha feito esses quadros em 1915, e os vendi, na ocasião, por uns tostões... 

– Quantos quadros pintou até hoje? 
Não sei, pintei mais foi na fase “dos quarenta”. 

– Quantos quadros faz por mês? 
Uns dois ou três, só... 

– Seus quadros são vendidos onde?
– No Rio, na “Petit Galerie”, e aqui, vendo diretamente ou através da “Cosme Velho” ou “Documenta”. 

– E quanto custa um Volpi hoje? 
Os maiores, de 12 a 15 mil, os menores, de 8 a 10 mil. 

A partir de 1922 começa a expor em várias mostras coletivas e em salões dos artistas plásticos. Junta-se à “Família Artística Paulista”– Rebolo, Osir, Zanini, Graciano, Quirino – no palacete Santa Helena. Ganha vários prêmios, começa a ser notado. 

– Qual o maior mérito da “Família”? 
Organizar exposições. 

– Por que pinta? 
Porque gosto. 

– O que significa o concreto, o abstrato, em sua obra? 
Não sei, nunca pensei nisso. 

Volpi é dócil, doce, feliz e alegre. Judite, sua mulher, diz que ele não cria caso por nada. Eles têm uma filha, que, telefone à mão, é sua secretária solícita. E mais de 30 filhos adotivos, crianças pobres do Cambuci e de outros bairros, que criaram a ajudaram a crescer. Muitos deles levam o nome “Volpi” na assinatura. Volpi não é um toscano temperamental, ao contrário. Fala da sua obra com simplicidade, fugindo às formulas e tendências. 

Gosto da boa pintura, seja ela de Giotto ou Tarsila, Picasso ou Di Cavalcanti... E quando ela não me diz nada – e tem muitas telas de Picasso que não me dizem nada – não gosto. 

Ele almoçou bem – arroz, feijão, carne de porco e bife de vaca, salada. Um copo de vinho tinto – sempre. Nessa hora, ouviu um noticiário de rádio. À noite, apenas lancha - e quando sai com os amigos, gosta de “pizza” e vinho – tinto. Quando não sai, vê novela para distrair, joga xadrez, mesmo sozinho, ou paciência. Volpi acredita nos signos. É de Áries. Acha engraçado quando o chamam de ingênuo, de primitivo.

"Não estudei pintura, mas li bastante, viajei pela Itália e gosto de ver pintura boa, conhecer o passado." 

No seu ateliê, os 3 volumes da “Storia dell’Arte”, de Giulio Natali e Eugênio Vitelli são sempre consultados. Com seu linguajar típico, comenta com conhecimento sobre pintores antigos e modernos. A sua casa é repleta de telas de pintores amigos como de José Antonio da Silva, Golbbin, Souza e outros e de peças populares e de nosso folclore. Faz tempo que não vai ao seu sítio em Moji das Cruzes. 

Não recrimino as experiências atuais, gosto de toda arte que é boa.

Em 1954, já premiado, inicia com suas bandeirolas superpostas, rasgando fachadas horizontalmente, logo depois assimila ideias e imagens do concretismo. Depois avança para a abstração completa; já não é mais um pintor regional e sim universal. Os críticos, como sempre, não conseguem rotular convenientemente as suas telas, que, hoje, estão nos mais importantes museus do país e melhores coleções particulares. Theon Spanudis, psicanalista conhecido, compra dezenas de Volpis – que revende, agora, a bons preços. Volpi também fez murais (afrescos) e pintou a igrejinha do Palácio da alvorada, em Brasília. 

Me disseram que está toda estragada... No Palácio dos Arcos, me disseram que ainda não, ainda bem. 

A crítica Aracy Amaral prepara para setembro a grande mostra de Volpi, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Além da apresentação de Aracy, o catálogo está sendo elaborado por Haroldo de Campos, Mário Pedrosa, Maria Eugênia Franco e Décio Pignatari. Vão ser rodados dois filmes sobre sua vida e sua obra, por Décio Pignatari. Ao fazer 75 anos no mês passado, recebeu mais de 100 pessoas em casa. O baile durou até a madrugada. 

– E os jovens, Volpi? 
Ajudo todos os que vêm aqui. Pintura não ensino. Não se ensina pintura. Técnica sim.

– É feliz? 
Sim, muito – tenho tudo, apetite, saúde. 

Volpi abre um largo sorriso, a cabeça toda branca, a roupa esporte (“só raramente ponho gravata”) no corpo robusto. 

 Hermelindo Fiaminghi, um amigo chegado, comenta: O maior pintor do nosso país. Um artista e um homem – otimista, alegre, afetuoso, tranquilo, sadio, confortante, amigo dois amigos, intuitivo, espontâneo. 

Volpi prepara mais um cigarrinho, é o vigésimo nesse dia. É noite. Aracy Amaral vem discutir detalhes da grande retrospectiva de Volpi no Museu de Arte Moderna do Rio. Lá fora dorme o pombal de Judite. Ela chama Volpi para o jantar, acenando com aquele vinho tinto que o mestre não dispensa. 

Texto publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, S. P. em 22/8/71. 

A crítica e o mestre 

Imagem sobre azulejo


 Alfredo Volpi é uma das figuras mais interessantes da pintura brasileira contemporânea: o maior de nossos coloristas e um dos nossos artistas mais originais... Já completou meio século de uma riquíssima atividade pictórica... Sua posição em nossa pintura é singular: não se enquadra em qualquer das correntes dominantes cem criou escola... É também difícil situá-lo com exatidão na pintura mundial... Absorveu de modo criador numerosas influências, desde a dos mestres do quatrocento italiano até às do impressionismo e do concretismo atual, apurando sempre a sua visão e a sua técnica, sem desvirtuar a sua fisionomia artística tão peculiar. – MÁRIO SCHEMBERG 

Alfredo Volpi, sem pretender, é o analista e o revelador de um comportamento cultural brasileiro que transcende o registro dos episódios e o diagnóstico convencional dos modelos... A composição pictorial de Volpi baseia-se na estrutura cultural, estética, do comportamento arcaico brasileiro... Devemos a Volpi a visualização da paisagem humana do comportamento arcaico brasileiro, fundamentada na virtualidade de uma arquitetura romântica e protogótica, na iconografia bizantina e na nostalgia talássica dos degredados. – CLARIVAL DO PRADO VALADARES. 

A bem dizer, o geometrismo de Volpi nasceu de sua evolução natural do temário popular, das bandeirinhas de papel de seda, utilizadas nas festas juninas e que ele tomou como base de uma forma que iria desdobrar-se noutros elementos de simplificação... E assim temos agora o Volpi geométrico, que realizou uma incursão arriscada, partindo de um autêntico dado do folclore – não o que justificou a “pop-art”, o folclore urbano da incongruência de Pierre Restany. – GERALDO FERRAZ 

O reencontro físico de Volpi com a Itália se deu em 1950, na viagem que absorveu em Giotto o abstracionismo geométrico de linhas retas puras... A arquitetura colonial brasileira passou a ser usada por Volpi como uma abstratização, uma fachada única, uma superfície alheia á terceira dimensão. – MARIA EUGÊNIA FRANCO. 

Em sua obra Volpi demonstra um interesse relativo pela figura humana: sua preferência vai para a paisagem em, na paisagem, a casa... À medida que a arquitetura visual da casa vai se confundindo com a do próprio quadro, a cor vai se purificando: um Mondrian trecentesco. – DÉCIO PIGNATARI. 

Volpi pinta volpis... Suas casas, bandeiras, fachadas ou composições são sempre o resultado que Volpi encontra ao usufruir contemporaneamente de sua experiência dentro do figurativo, do abstrato ou do concreto... Eis porque Volpi pinta apenas como Volpi, enfrentando a predestinação do gosto com aquilo que ele argutamente sabe e acha inexplicavelmente que deve pintar. – WILLYS DE CASTRO. 

Nem pintor “ingênuo”, nem primitivo: o que lhe é característico é a humildade artesanal, fruto de profunda sabedoria pictórica... Suas inclinações de muralista... Até hoje não as aproveitaram os nossos arquitetos modernos. A posteridade lhes poderá tomar satisfações por essa omissão escandalosa... A posteridade vai guardar o nome de Volpi. É o mestre de sua época. – MÁRIO PEDROSA. 

– Ingênuo, no meu entender, é todo artista espontaneamente estacionário em sua arte; as crianças, os alienados, uma Grandma Moses, Henri Rousseau (Le Douanier), Vitalino, Heitor dos Prazeres. Volpi não é um ingênuo. Concretista, ele mesmo disse um dia, foi “por acaso”. E primitivo é o autor das máscaras africanas ou o artista das cavernas. Volpi recebe, constantemente, a informação de tudo aquilo que ocorre fora do seu meio-ambiente. Volpi é um homem simples, refinadíssimo. Suas figuras lembram os afrescos de Pompéia e sua pintura é aveludada, fosca. Volpi é um artista popular; nunca um primitivo. – Quem é mais importante: Di Cavalcanti, Portinari, Volpi? – A obra de Portinari terminou em 1939. Depois disso, ele descobriu Picasso e não teve mais nenhuma importância. Di Cavalcanti teve seu apogeu no final dos anos 20 e 30. Volpi é o melhor, porque se renova e mantém a mesma altíssima qualidade desde a sua primeira obra. Ele tem um senso de autocrítica raro e muito apurado. Hoje, com 76 anos de idade, quando uma obra não está como ele quer, ele vai até o tanque e lava a tela. Quem faria isso, com os marchands e leiloeiros abanando dinheiro diante das obras e do artista? 
(De uma entrevista concedida por Aracy Abreu Amaral ao Jornal da Tarde – 9/72).

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