Não quero ficar famoso nem me tornar milionário. Quero, apenas, pesquisar muito e pintar sempre. Morar na minha casinha, com a mulher e a filha, guiar o meu fusca... Perdi 10 anos na vida como soldado do exército italiano. Cheguei ao Brasil em setembro de 1946, e já dei duro aqui. Pintei prédios, expus 30 telas, mas ninguém comprou, passei fome, fui cartazista em agência de propaganda. Aí vieram muitos prêmios, ganhei o prêmio de melhor pintor na I Bienal, outros prêmios importantes ainda em outras três Bienais... Mas, nada disso importa. O que me interessa é fazer uma obra pesquisada, adulta, independente, de ressonância nos grandes centros de arte. Dinheiro, vendas, prêmios, “fofocas”, rodinhas, nada disso me interessa.
Danilo Di Prete acordou às 6 e meia, levantou-se, tomou café reforçado, em companhia de sua mulher, também italiana, dona Pierina. Pôs a calça rancheira, toda manchada de respingos de tinta, a camiseta esportiva e saiu pelas ruas do Jardim Europa, em sua bicicleta verde (importada da Itália). Ele mora numa casa estreita e comprida, muito bem decorada e arrumada, que chama pitorescamente de “vagão” – ali junto à mansão Prado e ao Esporte Clube Pinheiros. Comprou os jornais do dia, agora lê o “Estadão” de ponta a ponta, da primeira à última página. Corre os olhos, depois, pelos outros jornais.
- Gosto de ler tudo, política internacional, artes, pesquisas, esporte. Veja meu time, o Palmeiras, fez 14 gols em 3 jogos. Pura bamba, se pega um time forte pela frente, acaba a história...
Di Prete ri, tem perfil de passarinho, uma cara esperta, é “l’uomo qualunque”. Às 9horas está entrando em seu ateliê, uma sala de 30 metros quadrados, nos fundos de sua casa – misto de oficinas de pintura, mecânica e eletricidade. São mil objetos e pertences, tudo numa desordem, muito bem arrumada. Uma lata de óleo serve de “administração” para os documentos, contas e papéis. Ali ele faz laboriosamente – em meio a muitos choques e sustos, curtos-circuitos – a sua arte cinética. Loquaz e com sotaque mediterrâneo:
"Cada um faz o que pode, dá o que tem. Desde há alguns anos faço estes objetos, baseado na construção e movimentação eletrônica. A meu modo de ver, a arte deve ter alma, vida e movimento. Hoje me parece que um quadro apenas pintado é um objeto morto numa parede. Pois os meus “quadros” têm luz, som, ruídos, movimentação eletrônica, vida. Uma arte não só cinética, mas com som, também".
Explica que na Itália, durante 4 meses por ano, em Viareggio, fazia carros alegóricos de carnaval. Todos se movimentavam, tinham luzes, eram ruidosos, ganhou muito com eles – “dava para me sustentar o resto do ano”. Desde então aprendeu a lidar “de marceneiro, de eletricista, de mecânico e de ferramenteiro”. Hoje sua arte – fora o talento – é feita de madeiras, tintas, telas de nylon, acrílicos, tubos galvanizados, alumínio, aço inoxidável e motores elétricos.
Di Prete interrompe. Os pardais e tico-ticos chegam ao telhado, ele joga pão molhado e alpiste aos passarinhos. Revira papéis antigos, mostra umas excelentes reproduções de antigas telas suas, feitas na Itália: são soldados, marinheiros, padres e pescadores, ao fundo, céus cósmicos, rasgos brancos.
"Mesmo quando fazia arte figurativa, sempre me preocupei com o cósmico, o segredo espacial, o universo indecifrável. Isso até hoje, quando procuro integrar à arte cinética essa relação fantástica com o mundo irreal, misterioso, imprevisível em que vivemos. E também estou pesando em introduzir nos meus objetos, além de movimento e luz, música eletrônica e poemas falados. Na vida de hoje, desumana, burocratizada, mercantilista, todo mundo só pensa em se “desligar”. Então, os objetos que vou fazer doravante servirão ao homem moderno, serão utilitários, ele ficará em sua casa, depois de chegar “ arrasado” da cidade, muitas horas, diante deles, escutando seus sons, vendo seus movimentos coloridos e eletrônicos."
Dona Pierina – a chefe do vagão – vem chamar Di Prete, o almoço está na mesa, são 13 horas. Hoje como em quase todos os dias, o prato principal é a base de massa – ravióli al sugo – com um “Chianti” legítimo para acompanhar. O artista é um bom garfo. À sobremesa come muita fruta. Depois da refeição, uma leitura rápida. Lê a carta de sua filha universitária, Juliana, 23 anos. Ela está numa excursão na Europa, e não viu nada, lá, como a arte cinética do pai. Di Prete está orgulhoso, Juliana é monitora da Bienal e estua comunicações na “Álvares Penteado”.
- A arte cinética está tomando pulso em todo o mundo. Não são os generais ou políticos que marcam sua época. São os artistas. Vivemos hoje uma era tecnológica, com os extraordinários caminhos abertos pela ciência, pela pesquisa do espaço. Essa busca espacial, essa ciência cósmica, é a coisa mais importante que se faz hoje em dia. E os artistas contemporâneos devem interpretar e empenhar-se a tais caminhos. Por isso acho, digo e defendo a arte cinética, a arte de nossos dias.
- Que acha da arte brasileira de hoje?
Está fraca, os artistas em geral perderam a humildade. Os jovens não têm senso crítico, não querem pesquisar. Uns e outros, em sua maioria, caem ao primeiro vento. O importante é realizar com autenticidade e não figurar em catálogos e exposições, vender, ganhar prêmios. Entre as exceções situo um Grassman, esse sim, um artista excepcional, o maior gravador do Brasil em todos os tempos, técnico e artesão, que faz da pesquisa e da sua busca incessante, as bases de uma arte atual admirável.
- E o trabalho de galerias, museus e bienais?
Precisa ser reformulado totalmente – precisam atuar como um todo, riscar o destino do país com cultura e arte. Ninguém está acompanhando o progresso tecnológico do mundo, adequando o nosso desenvolvimento às nossas artes. A Bienal é uma grande mostra, de repercussão mundial, mas parece um museu morto, precisa ter cinema, baile, “meetings”, desfile de modas, concursos, editar uma revista, ser mais brasileira, atuante, progressista, moderna, ter vida.
Di Prete opina corajosa e abertamente, foi sempre assim entre nós, desde que, em 1951, com sua tela “Limões”, ganhou surpreendentemente o prêmio de melhor pintor nacional na I Bienal. Há dias falou na televisão. Suas críticas foram desassombradas. Não quer ofender ninguém, mas defende “uma arte jovem, não na idade, mas no espírito de vanguarda, aberta, avançada, avançadíssima”.
Chegou o carteiro. Le Parc, artista argentino, propõe uma exposição em Buenos Aires, só de arte cinética, com o próprio Le Parc, Davite, também argentino, o francês Schaefer, o israelense Adam e di Prete. Ele se contenta, vai topar. “Todo o dinheiro que ganho gasto assim, em pesquisas ou viajando pelo mundo, para pesquisar, aprender novas coisas”. Di Prete frequenta exposições diariamente, todas, fracas, médias ou boas. “O artista nunca se deve fechar numa casca de noz”, ri e volta a repetir que quer recuperar o tempo de soldado que “perdi nos campos de guerra da Itália e nos Alpes”. Ainda à noitinha, vai escutar música eletrônica e um cantor popular de que gosta muito – Caetano Veloso. Dos clássicos, só Bach. No seu vagão com telas de Silva, Mabe, Bonadei, Grassman, Volpi, Aldemir, ânforas romanas de3 mil anos, vasos etruscos, arte pré-colombiana, peixes fossilizados do Ceará, vasos gregos, ex-votos da Bahia, cerâmicas vitrificadas com pinturas suas – Di Prete parece feliz.
Não devo nada a ninguém, embora muita gente importante deva para mim... Tenho minha casa e meu carro, minha família, faço minha arte para minha satisfação, não para vender, detesto vender arte...
Mas revela, soltando uma baforada, magro e digno, sessentão, num esgar:
- Vivo angustiado, em busca e pesquisa permanentes. Só gosto de minhas obras na hora em que as faço. Muitas vezes ou quase sempre, vivo tremendamente frustrado. Nessas horas preferiria ser um açougueiro, um vendeiro de esquina. Vá bene?
Texto publicado originalmente no jornal "A Tribuna, se Santos, SP, em 30/01/1972.
O cósmico de Di Prete |
Danilo di Prete nasceu em Pisa, Itália, em 1911. Autodidata. Em 1932, expôs óleos em várias coletivas em seu país, ganhando alguns prêmios. Durante a II Guerra Mundial integrou o “Grupo dos Artistas Italianos em Armas”, com obras que ilustravam episódios da guerra na Albânia, Grécia e Iugoslávia. Em setembro de 1946, veio para o Brasil. Recebeu alguns prêmios importantes, inclusive em quatro bienais. Na década de 60, passou a dedicar-se à arte cinética, da qual é, hoje, a maior expressão em nosso país.
O artista e seus críticos
...Singularmente, entre todas as salas especiais do Brasil, Danilo di Prete apresenta a mais bela coleção de trabalhos, a mais harmoniosa e uma. Não se trata de uma retomada de posição: consideramos errado que “Limões” de 1951 esteja aí, mas também esse quadro, Prêmio do Melhor do Brasil na I Bienal, atesta, põe em relevo, comprova a notável evolução de di Prete, aos seus quadros das preocupações cósmicas. E o resultado do conjunto se faz simplesmente admirável. Cabe-nos conhecê-lo e proclamá-lo. – GERALDO FERRAZ.
...Sem dúvida, di Prete contribuiu substancialmente para a formação, entre nós, da nova pintura, que não teme comparações com aquela dos mestres de vanguarda do mundo inteiro. – WOLFGANG PFEIFFER.
... Di Prete , valendo-se desse postulado, faz dos elementos plásticos onírica visão cromática, em que as oposições de massas e vazios, de escuros e luminosidades, de grafismos em sulcos ou superposições em linhas coloridas provocam as tensões necessárias à sua problemática de inspiração cósmica, às vezes tranquila, às vezes dramática, mas sempre lírica. – MARIA EUGÊNIA FRANCO.
... Esta arte é verdadeiramente sua, pois possui sua própria unidade e fisionomia. Ela é testemunha de um gosto requintado e extremamente seguro, isto é, daquilo que se deve chamar de um autodomínio. Tudo isto é inteligente, comedido, delicado e, para empregar a palavra de que muito gosto e aqui se impõe, poético. Di Prete tem uma rica e sutil imaginação plástica e o que realiza aparece sempre de maneira perfeita. Por conseguinte, ela causa ao espírito do espectador uma grande satisfação e a sensibilidade dele um prazer completo e vivo – JEAN CASSOU.
... Pois, como se não lhe bastassem os estratagemas de “trompe oeil”, Danilo vai mais longe do que Le Parc e Shoeffer. Associa aos recursos plásticos o movimento pendular de lâmpadas acesas mas invisíveis que, indo e vindo, desvendam um espaço interior, uma nova dimensão pulsátil, despertam no bojo e na periferia dos quadros misteriosos fulgores de diamantes, esmeraldas, ametistas, turquesas, sílicas, quartzos, granadas, berilos, organizam aquelas maçanetas, aqueles fundos de garrafas, aquelas lascas, aqueles seixos a se transformarem em gemas, em grutas de Capri, em torsos siderais, enquanto as redes de nylon se põem a vibrar em ondas “moirées”. Trata-se de arrojado sincretismo de recursos que, renovando a obra de di Prete, a elevam ao mais alto gabarito da arte contemporânea universal. – JOSÉ GERALDO VIERIA.
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