O desenho brasileiro está progredindo em seus processos de criação e execução. Manter a sua linha tradicional não teria razão de ser. Os ótimos? Destaco Wesley Duke Lee e Aldemir Martins e, no campo do cartonismo a turma do “Pasquim”. O Geraldo \Lamego que conheci na Europa, gosto dele como retratista, faz um trabalho honesto. Quanto a mim, continuo com os retratos – até hoje já fiz mais de mil, aqui e no estrangeiro – e também faço uma pintura não comercial, pode ser até feia e pouco vendida. É a minha contrafacção, uma decorrência da linha “pop” que, aliás, já abandonei. A minha linha de agressão divertida, digamos.
Darcy Penteado, 45 anos, solteirão impenitente, o rosto corado dos vinhateiros da terra onde nasceu – São Roque. Educado, gentil, refinado, descontraído, superamável, mora aqui e na Europa, seis meses por estação. Seu apartamento de cobertura na zona dos jardins é de alto luxo e bom gosto – ali estão as arcas romanas, mesas e cadeiras de “fiber glass”, belíssimos pratos “art nouveaux”, vitrôs coloridos, estufas italianas, estátuas neoclássicas, roupas de soldados jordanianos, e, claro, desenhos seus. Darcy é, ali, pintor, desenhista, cenógrafo, retratista, decorador, publicista e até arquiteto “de araque”. Falar é um de seus fracos.
– Nasci em São Roque, tenho 45 anos, mas as pessoas curiosas dizem que aparento menos. Pratiquei nudismo aos 4 meses de idade e sua autodidata de nascença. Gosto de sol e do verão, mas pratico esportes de inverno havendo oportunidade, isto é, havendo neve. Faço meus quinze minutos diários de ginástica, amor quando dá certo, gosto de nadar e adoro esqui aquático. Civilmente falando, continuo solteiro, mas com cinco sobrinhos, um cachorro e uma gata. Desenhei moda, publicidade, ilustrei livros, revistas e suplementos de arte, fiz cenografia, trajes para teatro e TV., escrevo contos, às vezes e, na base da curiosidade, já publiquei artigos sobre história do traje. Minha primeira exposição individual foi em 1949.
Darcy está na dele.
– Aqui no Brasil, expus individualmente no Museu de Arte Moderna (duas vezes), no Museu de Arte de São Paulo, no de Belo Horizonte, em várias galerias, além de coletivas e de diversas bienais. A propósito de bienais em duas delas estive na “dica” do prêmio de Melhor Desenhista Nacional. Não sei se foi verdade ou “papo-furado” de sempre. Da comissão premiadora... Na verdade, os deuses nunca me favoreceram o bastante quanto a prêmios de artes plásticas, mas obtive muitos em trabalhos para teatro e ilustração de livros.
– E no Exterior?
– A primeira vez que expus no Exterior foi na Suíça, mostra coletiva, porém, idem a primeira vez que fiz em Nova Iorque e em Buenos Aires, todas em 1955. Em salões internacionais participei da Bienal de Paris em 1961 e do Salão de Monte Carlo em 1964. Em Portugal, em 1956, aconteceu a minha primeira individual, fora do Brasil. De 1962 em diante, passei a morar na Europa, quase sempre em Roma, mas as duas primeiras mostras foram na Alemanha em 1964, onde minha abstração – eu deixara o figurativismo havia pouco – foi comparada a Hartung, Sonderbnorg e Tapies em termos elogiosos.
– E as suas experiências?
– A abstração foi uma boa experiência, todavia, a minha sensibilidade me chamou novamente, não à figuração propriamente dita, mas a uma composição informal de colagens que obtive com elementos “vividos”, como os encontrados nos lixos do Trastevere, nos mercados de velharias de Roma ou, ainda, os cartazes, avisos fúnebres e religiosos que arrumei de muros antigos. Com essa escória delirante de vivência fiz os trabalhos de 1964,-65. O crítico Argan, presidente da Associação Internacional de Críticos de arte e catedrático de História da Arte da Universidade de Roma, disse então que “embora se comprazendo de exibir os objetos assim como se apresentam, Darcy Penteado não tem nada em comum com os pintores “pop” e sua técnica de fato; não é aquele do “assemblage”.
Darcy Penteado não espera nova pergunta. Continua a depor:
– A meu ver, começo em 1964 em ciclo inteiramente novo, importante para mim. Após as colagens pesadas e que usei até 1965, o material foi sendo simplificado e os trabalhos acrescidos de mais conteúdo literário. Era a “post-pop” se transformando em ”figuração narrativa”, onde a formação gráfica e a dinâmica da história em quadrinhos me permitiam evidenciar com ironia nostálgica, o enterro de um mundo ideal e nunca existente. A coesão dessas duas fases, em boa parte inédita, no Brasil e o fato delas terem gerado diretamente a atual, foi o que me fez incluí-las na didática da minha mostra na Bonfiglioli. A minha “Proposta para uma nova Via-Crucis”, feita em S. Roque em 1966, foi exposta no Brasil e depois viajou comigo para Roma e Paris. Gassiot-Talabot, “papa” da jovem pintura francesa, disse: “Penteado é um pintor católico; ele nos diz isso tranquilamente e celebra a mensagem evangélica com uma convicção que parece, contudo correr o risco da profanação. Para ele o processo de Cristo é ainda atual e seus juízes, seus carrascos, somos nós mesmos”.
A entrevista não se esvazia. Darcy dá-lhe um toque pessoal.
– Tenho lutado comigo mesmo para não pensar na incomunicabilidade entre os seres humanos, nos seus preconceitos, intolerâncias e consequente violência. Hoje, sem me tornar um indiferente, consegui com muito malabarismo e um certo cinismo, o prodígio de ser uma pessoa bem-humorada, num desajustado e caótico. Não creio fazer arte de agressão, mas tento com ironia, a tragicomédia ou o patético, exprimirem linguagem pictórica esse meu sentimento (ou ressentimento?) em relação ao mundo. Aos que me conhecem mais como portraitista que como pintor, isto deve surpreender. Ao “portrait”, que alguns críticos chamam de “gênero amável e pintura”, me dedico profissionalmente e creio bem, desde 1955, dando-lhe a minha criatividade o máximo possível, porque dele tenho vivido com conforto, felizmente...
– E suas experiências atuais?
– Minhas experiências atuais em plástico, material comum ou cotidiano, são tentativas de renovar o grafismo, de fazê-lo flutuar liberto, de “tromp-l’-oeil” ou ainda, de uma nova dinâmica. Tentativa de divertir o espectador, com o mesmo amargo-cômico de uma piada de humor-negro, fazendo-o participar dos meus quadros, vestindo os meus nus ou vestindo-se ele próprio com meus plásticos desenhados. O que eu estou fazendo não é mais “pop”, nem figuração narrativa. É algo novo talvez. Digamos, por enquanto, que seja um brinquedo, apenas. E por que não?
Darcy Penteado afaga ágata “Mexerica” e o cãozinho “Zuquino”, da raça inglesa Whippet, que trouxe há pouco da Europa. Fala de um dos últimos retratos que fez em Roma, de uma de suas amigas do cinema – Silvana Mongano. No Brasil, já retratou mais de mil pessoas, de Maria do Carmo Sodré a Cecília Matarazzo, de Oswald de Andrade a Zulmira Lunardelli. Em Paris, recorda-se de duas retratadas, mais dos “retratos”, Audrey Hepburn e Françoise Sagan. Darcy dá algumas ordens a seu fiel secretário, João Bertolotto, depois espia umas pinturas infantis de seus sobrinhos de S. Roque, “criançada boa e amiga, que vejo tão pouco”. Vai agora para a Galeria Bonfiglioli, na Rua Augusta, onde expõe sua pintura, seus desenhos, seus nus, suas colagens, seus “brinquedos plásticos” – tudo é a mostra “A arte não amável de Darcy Penteado”. Despede-se com a maior amabilidade.
3/10/71.
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