– Vivo trabalhando ou amando sempre com o sentido quase faminto de encontrar-me a cada segundo... Vivo onde estou no momento, para a arte, com meus amigos e para meus amigos. Tenho minha casa e meu atelier em Campo Grade... Gosto de trabalhar lá... Minha equipe, isto é, meu carpinteiro João Amorim; meu ferreiro, o cuiabano; João Sebastião, amigo e fazedor de crachás, talvez por serem mato-grossenses como eu, frutos da sociedade do boi, entendem perfeitamente o que quero exprimir e criam também em suas mãos, o que minha cabeça quer.
Espíndola não tem 30 anos e estudou Jornalismo, Filosofia, é inteligente e perspicaz. Sua primeira mostra individual em S. Paulo na galeria “Portal” foi um sucesso.
– O que vem a ser a “Bovinocultura”? Literalmente, “Bovinocultura” seria a cultura do gado, isto é, a criação do animal, pura e simplesmente. Todavia, em minha obra, a palavra “cultura” deve ser sentida em toda a implicação semântica que ela contém, ou seja, aquilo que avança sobre o social. Seria melhor dizer, a cultura de uma sociedade que vive às custas do boi – explica, na roda formada.
– Por que escolheu o boi como “personagem”?
– Não seria propriamente “personagem”, melhor dizer assunto. Naturalmente que o assunto é um mero pretexto para fazer arte, no sentido de forma e cor. Mas a arte não pode ser desligada e nunca o foi, do meio social. Consciente ou inconscientemente a criação artística traz, em sua revelação, as fundas marcas das circunstâncias de ambiente social que envolve o artista. Às vezes o artista é mais objetivo em seus temas, como no meu caso, onde coloco o assunto de minha arte em evidência nítida, tendo em vista que minha região mantém-se e progride através do boi. A primazia desse animal, como personagem em meus temas, quase que se impôs sozinha.
Espíndola diz que não separa a arte da sociedade. “Isso não chega a ser propriamente uma filosofia na arte, mas é sua própria realidade. Quanto ao expectador, ao deparar-se com uma obra cujas características sejam evidentemente sociais, não deve ficar apreso apenas ao âmbito generalizado que o assunto revela. Ele deve ter olhos também para, em cada forma e em cada sugestão recôndita, penetrar no social mais intrínseco, que é o próprio universo individualizado, enfim o homem, indefinível e inconceituável no que ele traz dentro de si próprio”.
– Sua arte é regional?
– O assunto de minha arte é encarado como regional. Construo minha arte em moldes regionais. Uso o couro, o ferro e a marca de minha região, mas, absolutamente, o boi, a carne, ou seja, o “pecuspecunia “ não é privilégio de Mato Grosso. “Pecus” é uma característica econômica e vital em quase todo o mundo e sua amplificação em “Pecúnia” é absolutamente imprescindível e universal. Mas também poderia dizer que do regional se atinge o universal, pois todo o assunto da arte, em seu âmago contém o interesse, a procura e a essência do próprio homem seja qual for o momento que o circunstancie, e o homem, somente ele, é universal.
Um crítico carioca afirmou que Espíndola, em algumas telas, faz um erotismo muito da vaga atual. Ele contesta, acha que a relação talvez esteja na sensualidade das linhas e das formas. Diz que já associou em alguns quadros. Telas de vacas com seios de mulher, quartos de boi com ombros de homem “e evidentemente o chifre é nitidamente fálico”. Diz que sua técnica procura dar a precisão que a obra a ser comunicada requer.
“Como minha obra tem muitos aspectos de expressão, minha técnica é múltipla e vária, desde o óleo sobre tela às camadas superpostas de telas de arame, ou desde o ferro em brasa sobre o couro e do arame farpado, ao ambiental, com a participação sensorial inclusive”.
– Que acha da arte brasileira?
– Creio que desde a queda do abstracionismo no Brasil, fruto do advento da Pop Art e através do movimento iniciado com a Nova Objetividade em 65, a Arte Brasileira tem procurado caminhos para reatar sua comunicação em moldes mais profundos e nacionalistas, tendo-se voltado e reestudado o antropofagismo iniciado por Tarsila.
– E as bienais, salões oficiais, galerias e “marchands”, como os encara?
– Acho que bienais e salões oficiais ainda são muito importantes para o artista brasileiro, principalmente para aqueles que trabalham em cunho sério de vanguarda. Não desaprovo o trabalho das galerias e “marchands”, acho inclusive necessário, porque o artista deve viver daquilo que faz. Muitas vezes, porém, as galerias e “marchands” vão mais ao encontro do gosto já existente no público consumidor (que nem sempre é erudito), achando, portanto mais cômodo não impor uma arte de vanguarda a esse público. Dessa forma, quase que não existia, além dos salões e das bienais, oportunidades para o pesquisador de vanguarda exibir e sentir-se apoiado no valor de suas pesquisas. A Bienal de São Paulo, embora todas suas contradições e incongruências é ainda a única oportunidade que o artista brasileiro tem de confrontar o seu trabalho, e de ver nas delegações estrangeiras o fruto real dos novos conceitos artísticos.
Espíndola responde a nova pergunta:
– Mais importante que o “rumo” é o vigor da arte feita por jovens no Brasil. Qualquer que seja o rumo da pesquisa jovem ela vem sempre acompanhada de uma qualidade inovadora. Agrada-me o interesse pela pesquisa dos novos materiais. Acho de interesse e importante o desenvolvimento de toda a possibilidade tropicalista para então depois partir para novos rumos, brasileiros explicitamente.
– Planos futuros?
– Planos futuros e projetos são sequencias das consequências. Enquanto tiver algo desconhecido a dar a conhecer sobre o boi, ou como sua pergunta, enquanto o boi for um “mito” e eu tiver capacidade de exprimir, sem reprimir-me, continuarei, não por fidelidade, mas por necessidade ou obrigação.
– Como vê esta sua primeira individual em São Paulo, na “Portal”?
– Vejo como possibilidade de apresentar ao público trabalhos posteriores à minha obra na XI Bienal, bem como demonstrar através de trabalhos datados de 67 a 72 o processo evolutivo de minhas manifestações. Também a pesquisa de como será aceito meu trabalho no mercado consumidor da arte. Além disso, a “Portal” é uma galeria ampla e moldável.
– Está tentando morar num grande centro artístico como São Paulo ou Rio?
– Não estou nem vou tentar, muito pelo contrário, sou a favor da descentralização do ambiente artístico. A arte tem como finalidade atingir a todo ser humano, de modo que seria interessante a permanência de alguns artistas no interior do país. Quanto ao problema da atualização do artista do interior, lembro que atualmente os meios de comunicação são instantâneos e as distâncias já quase não existem. Creio até que em viver num grande centro seja um tanto quanto dispersivo. Isolado, pelo menos eu, particularmente, tenho mais capacidade de concentração; porém são necessários mergulhos periódicos na vida, na cultura e nas ideias que um grande centro propicia.
– Não tenho hobbies, gosto de tudo que provoca emoções, mental ou sensorial, gosto de mistério e da magia, gosto de ver e sentira força telúrica das coisas e dos acontecimentos, gosto ainda e, primordialmente, de gente.
26/3/72.
Humberto Espíndola nasceu em Campo Grande, aos 4 de abril de 1943. Em 1966 integrou-se ao movimento cultural de Aline Figueiredo. Criativo, consciente, hábil artesão, participou com suas telas a óleo e esculturas totêmicas de várias exposições em Corumbá, Cuiabá, Curitiba, Rio, Vitória, Campo Grande, Belo Horizonte e Paris. Instituiu o boi, símbolo da riqueza de Mato Grosso, como tema de suas obras – cujo conjunto, denominado “Bovinocultura” expôs na XI Bienal, ganhando o prêmio Viagem ao Exterior do Júri Internacional. É sem dúvida um dos artistas mais pessoais e criativos do Brasil. Através de sua obra intensa e autêntica, o boi tornou-se um personagem marcante da arte brasileira... O boi de Espíndola não é mais o vitorioso e selvagem lutador de chinfres erguidos, mas a vítima na sociedade na qual vive e de que traz na sua carne as marcas do sofrimento. (Lisetta Levi).
Espíndola antepõe aos seus temas atmosferas de ritos de contágio ecológico, como se as terras, as águas e os bichos que pinta ainda estivessem em potencial de totem e tabu, aquém da civilização de consumo, na era ainda dos clãs. (José Geraldo Vieira).
O artista inova com perfeito domínio técnico e manipula sua temática em profundidade... Bovinocultura, caso raro no Brasil, corresponde a um autêntico exame crítico, em termos altamente estéticos, na chamada civilização do boi em seu Estado natal. (José Roberto Teixeira Leite).
Humberto Espíndola é uma das mais vigorosas afirmações de uma arte autenticamente brasileira. ... O boi é o dia e a noite, a realidade e o sonho, a história e o mito, a miséria e a riqueza... Não se trata apenas da realidade de Mato Grosso, é o Brasil, nas suas contradições, que aparece em seus quadros. (Frederico Moraes).
Satanismo bovino
Muito antes da badalada Semana de 50 anos – ou seja, a Semana de Arte Moderna, que acaba de tornar-se cinquentona – já se falava muito, com toda razão, em uma arte autenticamente nacional, que fosse livre, é claro, de academicismos e de programas ostensivos incompatíveis com a real invenção artística. Depois da Semana veio a Antropofagia de Oswald; recentemente, a Tropicália, depois de Portinari.
A obra de Humberto Espíndola representa um capítulo importante no movimento cultural citado. Humberto, jovem ainda, começou a compô-lo, e ainda continua, sem filiação oficial a um grupo. Não expõe programas, nem lança manifestos. Sua expressão é toda plástica. Mesmo antes do artista apresentar usa estupenda criação de um ambiente na XI Bienal de São Paulo, já não seria possível, entretanto, encará-lo como “pintor” simplesmente. Espíndola inclinava-se ao “quadro-objeto” e aos “combine-paitings” em geral. O arame farpado, o crachá e o chifre de boi – estes dois últimos os elementos de base da contundente composição da bienal – já se haviam tornado típicos da produção do artista. Com estes elementos adicionados aos recursos propriamente pictóricos, Espíndola criou através da “cultura do boi” – retrato acentuadamente crítico dos planaltos e sertões do Brasil Central.
Vivência
A opção temática de Espíndola nada tem de gratuita. Nascido e vivido em Mato Grosso, Espíndola, depois de consagrado, insiste em permanecer ali, seduzido sempre pelo tipo de vivência sobre o qual elabora em sua atividade artística. O Setor por ele coberto não é estranho à produção literária brasileira. Pelo menos um setor a ele afim, no encontro de Minas e Bahia, foi cenário e objeto de um dos monumentos da nossa literatura – o Grande Sertão, Veredas.
Mato Grosso não é igual; está e esteve em outra. Mas o boi, o campo aberto, o convite ao galope, a voragem, tem nele elementos de profundo contato com a terra que Guimarães Rosa transfigurou. Na verdade, há ainda algo mais em comum entre Guimarães e Espíndola. No Grande Sertão, o tema fáustico introduz a componente satânica; as Veredas às vezes levam pelo menos à tentação de um pacto diabólico. Nas composições de Espíndola há também algo de diabólico, que nos é dado através de indicações d e magia negra e de uma certa insistência sobre o fúnebro e o luto . O chifre do boi é uma quase feitiçaria. A paisagem do planalto que Humberto Espíndola nos dá muitas vezes apresenta-se calcinada como que por fatores malignos. Espíndola os identifica, parece, com males sociais; mas não de maneira primária e superficial. Ele reserva-se sempre um elemento de mistério, um imponderável, uma pergunta crítica que vai além do óbvio, para situar-se quase em um terreno metafísico, quase em um território existencial.
Fidelidade
Recusando-se a efeito literal e imediato, mas ao mesmo tempo apaixonado por todo um ambiente muito concreto e bem definido, Espíndola torna-se o retratista mais fiel de sua cena. Seus registros, ao mesmo tempo muito pessoais e muito objetivos, não se encontram afetados por modismos. Sombrios em seu mistério, são, entretanto, arejados. Indicam a vastidão do planalto, a possibilidade de aventuras livres.
Bem poucos artistas nacionais jovens definem uma curiosidade tão grande acerca de seu futuro quanto Humberto Espíndola. Assim sendo, é natural a expectativa em torno da nova mostra que quinta feira será inaugurada na Galeria Ipanema. Ela certamente marcará um ponto bem alto logo no início da temporada de 72. Devido talvez à reserva de seu temperamento, Espíndola tem sempre preferido comparecer a coletivas. O que veremos agora é apenas a sua segunda individual carioca. A justa consagração já recebida por Humberto Espíndola não o abala de seu Mato Grosso, nem mesmo para mostrar-se com maior frequência nos grandes centros culturais do país. Congratulamo-nos com o premio que lhe demos em 68, em Campinas, num júri com Schemberg, Amaral, Moraes, Geraldo Vieira, ao lado das bananas antropofágicas de Antônio Henrique Amaral. (Jayme Maurício – Correio da Manhã, 23-3-72).
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