Expondo estas últimas telas da conhecida série “Estandartes” que precedem da fase “Páginas”, expostas no Museu de Arte Moderna de São Paulo (no último “Panorama” e com retrospectiva de Valdemar da Costa) e que será brevemente apresentada no Rio de Janeiro, a Galeria Seta marca uma etapa na transição cíclica da variada e rica produção da pintora Maria Leontina, como já o fizer em outubro de 1963, expondo o início desta série. A obra abstratizante de Maria Leontina é, no ver do saudoso crítico Lourival Gomes Machado, uma das poucas, senão a única, dentro do abstracionismo brasileiro, em que o lirismo se apresenta irrompendo a abstratização ao invés de ser por ela favorecido.
Antonio Maluf expõe e Maria Leontina, na Seta, já vai explicando:
– Em todo artista, ao longo de sua evolução, há um desdobrar-se de associações plásticas que o levam de uma fase a outra na continuidade do que quer dizer, na tentativa de expressar o seu ser integral, embora o faça por fragmentos... As fases são novas temáticas que madurecem ou então brotam espontaneamente, entro dela, novas maneiras de sentir e exprimir. Têm que ser depois filtradas plasticamente. Mas é preciso, antes, que o artista as deixe fluir livremente. Não podem ser inibidas, reprimidas, senão soam falsas, inautênticas. Isto que estou dizendo qualquer um sente e sabe, não tem nada de insólito... Cada fase ele domina genericamente, apenas para distinguir as mudanças de um desenrolar psicológico. Qualquer artista tem logicamente suas mudanças dentro de si, que ele elimina ou filtra, à sua maneira, contanto que conserve sua unidade íntegra. É o que pode distinguir um artista de outro, pintor, poeta, escritor ou músico. Também um dentista não deixa de ser um criador, dentro de sua pesquisa. E o crítico de arte ou de literatura, quando interpreta neste ou naquele momento dos diferentes métodos de “aproximação” de uma obra de arte.
– Como define sua fase mais recente, as “Páginas”, ou as anteriores?
– Nas “Páginas”, pretendo que cada um possa ter um diálogo pelo silencio, ou entender o que é impossível, desde que o título é apenas simbólico, mas definido. Ao mesmo tempo cada um pode ler nelas o que quiser de si mesmo ou do que o artista quis definir plasticamente, com um traço ou uma cor conscientemente titubeante ou apenas sugerido. Tenho alguma esperança de que algumas pessoas afins ou não comigo percebam, sintam e recebam o que estão nelas. Refiro-me à cor e à expressão de um traço aparentemente absurdo ou de uma forma que lhes pareça irregular... Quanto às outras fases, acontece o mesmo. São respostas e vivências que uma denominação genética tenta explicar: as “Naturezas Mortas” (tema amplo, que irrompeu de maneira surreal, isto é, os objetos reais dentro de uma atmosfera e um espaço irreais), as “Sant’Anas” (inspiradas nas esculturas de arte sacra brasileira), mas também de um grande poder simbólico para mim – a mulher, a criança, o ensinar – “Os músicos” – “Os jogos e o s enigmas” – “Frases”, em que as cores e as formas eram colocadas no retângulo da tela sobre e sob uma linha horizontal que o dividia – “Da Paisagem e do Tempo” (paisagem interior, é claro e tempo intemporal). Difíceis de explicar fases meio mágicas, alquimistas – “Os episódios”, de construção mais rígida (episódios individuais, onde os símbolos, os arquétipos nasceram de uma convivência maior com a composição renascentista, em minha viagem à Europa, coincidindo com a natural influência com o geometrismo da época). Depois, fugindo dessa rigidez, nasceu formas arredondadas, como rochas, uma espécie de paisagem fantástica, de formas entrelaçadas, que expus na Petite Galerie de São Paulo. Fiz também muitos “pastéis” desta série... Estava fazendo uma coisa ligada à poesia e à fase musical, que não levei adiante, mas que seria a sugestão da palavra plasticamente comunicada. Depois vieram “Os Estandartes” de repente descobertos como tema plástico infinito, em suas possibilidades de variação de forma, linha e cor, manifestação dos impactos atuais, pálio múltiplo defensor de mil ideias.
Maria Leontina interrompeu o fio da meada, comenta com a irmã, a crítica e ensaísta Maria Eugênia, sobre seu filho Alexandre, de 13 anos, que ficou no Rio (é estudante) e não pode vir para a exposição. Leontina ainda tem casas em S. Paulo, da qual se desfará este ano para morar com Milton e Alexandre, em definitivo, no Rio, numa casa entre a Lagoa e Ipanema, vivendo como sempre, de e para sua arte. Ela acha a juventude brasileira genial. Ainda agora Valter Franco, filho de outro irmão, Cid, está cotado para ganhar o FIC no Rio. Gostou da Pré-Bienal, acha muito válido os múltiplos e a arteônica, mas também a pintura tradicional. Cada um na sua, diz, com o sorriso à flor dos lábios. Não sabe quantos quadros pintou até hoje. Os prêmios são muitos, aqui, nas Bienais, fora. A relação é longa. Está no dicionário do Roberto Pontual e no catálogo bem montado por Maluf, esse bom amigo dos expositores, antigos e novos, Antonio Maluf está com a Seta desde 1968. É também desenhista e pintor – e premiado. Um dos iniciadores do movimento concretista no Brasil (o cartaz a 1ª Bienal é de sua autoria). Nas salas laterais a Seta tem mil peças de “art nouveau”. Maluf faz tempo está ameaçando organizar uma grande exposição dessa arte que considera “a mais expressiva arte do século passado”.
– Você se considera intuitiva ou racionalista?
– A ente é hora um pouco escravo, ora senhor de si mesmo. À vezes domina outras vezes é dominado pelo gesto ou pela forma. Temos que reconhecer isto ludicamente... Temos que ter consciência de realizar um trabalho espontaneamente racional, se se pode dizer assim, mas com um desenvolver-se homogêneo. O gesto distribui a emoção e a controla. O inconsciente rege, mas o concerto é o pintor que realiza, que afina as cores racionalmente. Na obra de arte, num quadro, o ilogismo em que ser plasticamente lógico. Muitas vezes o quadro está nítido, mentalmente, já pintado: a gente o vê inteirinho, com a cor e tudo. Mas na hora de pintá-lo, aflora outra coisa que devia estar na camada de cima. Escondida. De repente, sai aquele que a gente tinha já visto antes. É como se conservássemos as ideias em escaninhos secretos. Brotam na hora que querem. Quando se sentem completamente gerados. Porque o artista tem que dosar o racional e o intuitivo. Mas nunca frear seu momento surpreendente do gesto que não esperava e que, descoberto, deve resolver se o deixa existir ou não... A linguagem plástica não pode ser racionalizada. Um quadro leva toda a carga emocional dinâmica ou passiva, de quem o fez. Se não contiver tudo isto, é frio, nada transmite. Numa colagem espontânea ou não, numa vanguarda inventiva, às vezes mesmo mal realizada tecnicamente, você “sente” o que é verdadeiro, o que virá dali, o que ali estão u o que é farsa... O que se tem certeza, sempre, é de que quando qualquer coisa verdadeira emociona, paramos diante dela espantado de emoção ou de alegria. Então descobrimos que ali está alguma coisa dita pela primeira vez... Quem se exprime através de uma arte qualquer tem que deixar-se fluir para ser autêntico. E ser honesto, sem preocupação com a moda. Se não tem jeito para colar papel, não cole. Se não tem paciência ou interesse de inovar por inovar, fique quieto dentro de sua maneira de expressar-se, mensageiro de si mesmo para que os que o puderem compreender.
– O que significa para você comunicação em arte?
– Não acredito em arte para muitos. O leigo atual, que compra um quadro para enfeitar sua casa ou para “investir” (palavra que não compreendo atribuída à obra de arte) muitas vezes acerta por intuição crítica ou por sensibilidade. Para os artistas, digo, para todos nós, pintores de quadros ou fazedores de uma arte nova ou de vanguarda não sabemos mais quem gosta do que, se sente ou percebe o que estamos transmitindo liricamente ou amargamente, ou tragicamente, ou pastoralmente. Aquilo é apenas um objeto que pode ser transferido de um lugar para outro, de uma casa para outra, um divertimento de trocas, um arremedo de jogo... Um quadro não é mais uma coisa, um mundo com o qual se queira conviver, como uma pessoa que não se pode substituir. Não sabem que um quadro, uma escultura, um livro, aquela música ou aquele poema representam um ser inteiro. Apenas com a diferença de que um quadro é só aquele, que captou aquele momento, o gesto, a emoção ou emoções do tempo em que foi realizado, os nervos, o alheamento, a racionalização, o estado psicológico, o instante que não vai se repetir da mesma forma em outro quadro, mesmo que seja uma cópia dele ou uma replica.
– Por que de uma arte mais complexa, você chegou a essa simplificação atual, a essa depuração?
– Nós temos momentos complexos, que queremos deixar num quadro. Formas que simbolizam harmonias ou conflitos. Às vezes falamos meio ansiosos, como se tivéssemos muito que contar. Outras vezes, contidos, falamos tranquilamente. Ou então estamos o ar e transmitimos quase acremente o que sentimos. E sempre esperamos, temos mesmo a pretensão de ser entendidos... A simplicidade, a depuração são estados de espírito. Precisamos sempre, é claro, fazer uma triagem. Não sintetizar demais, porque esfriamos as palavras plásticas, o ardor de transmissão que a gente talvez deseje que se integre no mundo do outro. Esperamos que o possuidor da obra queira conversar, associe aquela forma ou aquela cor a alguma coisa que também foi dele, que também ode ser criado.
24.9.72.
As viagens temáticas de uma abstrata sincera
– Há anos venho acompanhando o desenvolvimento da personalidade de Maia Leontina através das telas apresentadas em mostras coletivas, e atentando para o seu progresso técnico... O que se expõe agora é um conjunto das obras de 1948 e 1949, e põe em relevo um lirismo que se compraz mais na cor do que no desenho, e mais na expressão, algo “fauvista”, do que na composição... Por ocasião das últimas exposições do sindicato, observei quanto havia de doentio em sua pintura acinzentada e quente, feita quase toda de fusões e de impulsos também, de muita melancolia, senão de amargura. A artista evoluiu. Ei-la que traz uma mensagem de convalescente. As características fundamentais de sua antiga maneira não mudaram, mas os planos se ampliaram e o colorido se afirmou com maior nitidez. Talvez seja, entretanto, a presença do poeta o traço essencial desta pintora em pleno progresso. SÉRGIO MILLIET (1949).
– Eis aqui uma pintora da qual é preciso falar em tom mais afinado, com maior discrição. Uma artista que tranquilamente dispensa as fórmulas “passe-partout” da crítica, as vagas teorias, a vaga poética, a vaga filosofia e com segurança e amabilidade mesmo nos vai dizendo em sua pintura aquilo que nunca deveríamos esquecer; que essa universal e eterna liberdade, base de toda ação humana, se exacerba e cristaliza no verdadeiro criador, e que uma das nossas grandes heresias, dos nossos maiores ridículos, é acreditar que somos capazes de prever, antecipar as formas de arte... E concedamos, definitivamente, a Maria Leontina, aquele título e aquele lugar que poucas mulheres têm conseguido na reduzida frente dos “grandes pintores” brasileiros contemporâneos. – JAYME MAURÍCIO (1961).
- A obra abstratizante de Maria Leontina é no ver do saudoso crítico Lourival Gomes Machado, uma das poucas, senão a única, dentro do abstracionismo brasileiro, em que o lirismo se apresenta irrompendo a abstração, ao invés de ser por ela favorecido... A importância desta pintora é facilmente percebida nas referências dos que escreveram elogiosamente sobre ela. Apoiando-nos, com tranquilidade, nesses comentários endossados através do tempo de evolução de sua obra, por tantos dos mais representativos nomes da crítica brasileira temos a certeza de apresentar a exposição de uma artista que definitivamente contribui para o desenvolver o vocabulário plástico surgido de nossa realidade nesses 50 anos que se sucederam à Semana de Arte Moderna, trazendo uma contribuição pessoalíssima e de incomum sensibilidade plástica. – ANTONIO MALUF (1972).
– Maria Leontina tem passe livre para todas as viagens. Além do talento, a sinceridade de sua arte e o autêntico de sua personalidade, que é sempre motivada por um motivo ainda mais permanente e fatal que o do pintor em sua pintura – o amor – são a garantia de que trará sempre dessas viagens temáticas algumas imagens dignas de conviver conosco em nossas melhores horas. – MÁRIO PEDROSA (1963).
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