A Benedito Paretto, velho
companheiro nas artes.
L.E.M.K.
– Acho as Bienais horríveis, os críticos de arte mais horríveis ainda; se estivesse nas bienais estaria morto como artista, ainda bem que saí delas há muito tempo. Hoje minha arte corre o mundo, é uma beleza!
José Antonio da Silva abre uma gargalhada franca Ele está sem gravata (raro) e de óculos escuros (habitual) no seu quarto “atelier” do Hotel Santa Terezinha. Cabelos penteados para trás, não aparentando 63 anos. De 15 em 15 dias o primitivo de São José do Rio Preto desce de trem até a capital. Aqui – a contrário o do que acontece na sua cidade, onde vive num ambiente de hostilidade oficial e gratuita, dada a sua fama nacional e mundial –, tem amigos certos, tem compradores habituais para suas telas tão coloridas de matas e plantações, boiadas e carreiros, queimadas e assombrações, o universo de lendas e vivências roceiras e José Antonio da Silva.
– Como é o seu dia em Rio Preto, Silva?
– Acordo com o galo cantando, às 6 da manha, tomo um copo de leite, uma xícara de café, me apronto, e vou pintar até às 11 horas. Almoço com minha mulher Rosinha e meus 6 filhos, como arroz, feijão, verdura, carne, gosto de tudo – mas não abuso, para não engordar. Depois do almoço vou repousar duas horas, ninguém me tira da cama. Levanto-me e vou para o Museu de Arte Contemporânea de São José do Rio Preto, que fundei e que continua sendo de minha propriedade, e lá fico até às 17 horas. Volto para casa, tomo um lanche às 18 horas e então gosto de ver as novelas da televisão e o Ultra-Notícias, para estar bem informado. Não saio à noite, não, também não pinto. Não bebo e tampouco leio, durmo cedo às 21 horas.
– Qual a inspiração de suas pinturas?
Silva diz que se considera “folclórico” - já editou dois discos com nossas lendas e músicas da roça e “caipira autêntica”. E que sua maior inspiração são os temas da vida rural, da nossa vida do interior, onde passou grande parte de sua infância e da juventude, como domador de burro, colono, camarada, meeiro, empreiteiro, pintor de cemitério, limpador de poço, guarda noturno, fiscal de fazenda, violeiro, garção, quarteiro de hotel, etc.
Silva gosta de dizer que não é só pintor. É também desenhista, escultor, folclorista e músico. Já escreveu "A História da Minha Vida, editado pelo Museu de Arte Moderna (esgotado) e o romance "Maria Clara" - ganhando um e outro, respectivamente, elogios rasgados de Carlos Pinto Alves e Antonio Cândido.. Que saudaram os escritos autobiográficos e cotidianos de José Antonio da Silva, como literatura popular espontânea e autêntica, de um sabor de gabolice admirável, bem brasileiro. Atualmente ele revê os originais do romance de sua vida, rascunhando praticamente uma história nova. E ainda escreve, febrilmente, dois novos romances, "interpretando o meio rural onde se formou, num esforço tremendo, sozinho, derramando a impetuosidade do meio rural, o tumulto das emoções que lhe agitam a sensibilidade" (Benedito Lacorde Paretto).
– E como vai o Museu?
– Vai bem, adoro receber visitas, umas 50 a 60 por dia. O Museu tem mais de 250 telas de pintores como Volpi, Mabe, Caribe, Aldemir, os maiores pintores do Brasil, cujas telas troquei de graça por quadros meus. Agora, a Prefeitura quer oferecer uma bagatela pela coleção, foi um choque, nesse caso prefiro doar tudo para uma universidade... Em Rio Preto só quem me apóia é o padre Jansen, redentorista, que até encomendou uma Via-Sacra minha para a sua igreja.
Ele dispara:
– Sou caipira, mas não sou tonto. Poderia sair do Brasil e fazer sucesso lá fora. O crítico francês Leon Degand e vários críticos italianos elogiaram minha arte. Nem sei em quantos museus do mundo há quadros meus, até em Nova York tem. Já pintei umas 2.500 telas – uma beleza! Mas não saio não. Tenho de lutar contra os que não me compreendem em Rio Preto, tenho de sustentar os meus filhos solteirões... Já nasci pintor, se não pinto, fico doente. Estou já sessentão e me sinto muito bem. Tenho pouca ajuda, pouca gente me entende, estou sempre sozinho... Creio só na criação, amo a ciência, acho que Deus é a própria natureza, e o resto é embrulho. Cristo é o maior, mas ninguém quer ser o cristo.
– E a vida, a morte?
– A vida é pra quem sabe viver e tenha amor. Não temos outra vida no mundo, morreu, acabou; desejo viver em paz e seguir a minha arte.
– O que acha da pintura brasileira hoje?
– Pinturas temos muitas, pintores, muito poucos. E dos primitivos, prefiro calar-me. Às vezes, aos domingos, vou à Praça da República, prestigiar alguns colegas, trocar quadros. Há alguns bons, mas a maioria faz uma arte enganosa. Sofrem influências más, naquela misturança na praça.
Pede licença, vai ao telefone. Faz ligações para frei Benevenuto, editor de seus livros; Artur Camargo Pacheco, Lídia Alimonda, Sylvia Sodré Assumpção, Diná Lopes Coelho, que comprara sempre quadros seus; e José Mauro de Vasconcelos, Paulo Chaves, Maria Eugênia Franco, Volpi, seus amigos “contados nos dedos” Procura os jornalistas, Pacote, Gonçalo Parada e Hideo Onaga, “pintei uns quadros aqui no hotel, venham ver, uma beleza! São de entretela de alfaiate. Uso tintas holandesas”.
E José Antonio da Silva volta ao tema, confessa de novo sua frustração com bienais, ressalvando Lourival Gomes Machado e Paulo Mendes de Almeida, seus descobridores, Lívio Abramo, “que se arrependeu de me cortar” e “Ciccillo” Matarazzo Sobrinho, “um homem bom, mas vítima, envolvidos pelos lobos daqueles críticos da Bienal”.
– Entrei nas primeiras bienais, os críticos não me premiaram, depois me rejeitaram, quando vejo o nome Bienal até tremo, com tanta injustiça que fizeram comigo...
E Silva repete uma passagem de seu livro, com tiradas bíblicas: “quem for contras minha arte, está contra mim”, vá “pro quinto dos infernos”. Lúcifer está esperando os críticos das bienais. Os críticos têm de prestar contas à ele e aos demônios. E os diabos reservaram lugar para os críticos, “nos tachos mais quentes do inferno”. José Antonio da Silva ri. Grave, sério.
O pintor sai com andar firme pela Rua Vitória, vai comprar quatro vestidos de chita bem vistosa. “São para Rosinha, pra minha mulher me deixar sossegado, deixar eu fazer a minha arte, uma beleza!”
Dionisíaco e demoníaco
José Antonio da Silva, o pintor autodidata do interior paulista, descoberto em 1946 por Paulo Mendes de Almeida e consagrado por Lourival Gomes Machado, foi, desde o início, definido como um pintor primitivo pela totalidade da crítica de arte. Posteriormente, raras vezes a assim chamada crítica de arte exaltou-se com tantas discórdias, com tantas mudanças repentinas de julgamento e com tanta irresponsabilidade, como no caso de José Antonio da Silva.
José Antonio da Silva começou como um verdadeiro primitivo e continua sendo um autêntico primitivo de altas qualidades.
Suas primeiras exposições impressionaram muito, principalmente pela audácia de seu vivenciar e pela riqueza de suas emoções, tão diversas e variadas, tão marcantes em seu ritmo e em suas bruscas mudanças. Lírico e dramático, cômico e levemente humorístico, outras vezes triste e angustiado ou então exaltado, mas principalmente rítmico em sua perpétua e quase coreográfica movimentação emocional-intelectiva, esta riqueza caleidoscópica ofereceu desde o início provas de uma personalidade muito rica, inquieta, exuberante, meio dionisíaca, meio demoníaca. Seu sucesso foi absolutamente justificado.
A sua produção é sempre instantânea e espontânea, sendo justamente esta a característica que mais nos surpreende. É grande a riqueza de sua improvisação, de tão alta qualidade artística, ainda que carente de qualquer preparo sistemático. A sua capacidade compositiva é imensa. Há quadros que são verdadeiras sinfonias problemáticas e extremamente complexas, resolvidas com facilidade e felicidade espantosas. Silva é um híbrido, em parte dionisíaco e em parte demoníaco, às vezes barbado, cruel, irônico, mas sempre dramático e exuberante. A sua vivacidade e participação eletiva é de alta dramaticidade. Sua grandeza atinge não raro exaltações bíblicas. Ele soube surpreender-nos como ele mesmo se surpreende com as coisas e acontecimentos, principalmente com tudo o que é vivo na natureza: árvores, homens, animais, toda a criação e seu destino. Neste ponto difere muitíssimo, sendo quase o oposto de Douanier Rousseau, que exalta a vida em sua estática e firmeza, em sua solidez monumental. Silva é muito mais dinâmico, movimentado, inquieto, muito mais fugitivo, oscilante, brincalhão e delicado. É mais a dança e a música do que movimento; profundamente brasileiro, verdadeiro filho do Brasil sincrético e palpitante, do Brasil barroco e bárbaro, do Brasil das danças populares, dos ritmos complexos, das mitologias suburbanas e das festividades exuberantes.
Nas várias bienais de São Paulo tivemos a oportunidade de conhecer primitivos de vários países do mundo, mas achamos sinceramente que José Antonio da Silva pode figurar entre os maiores, sendo um dos mais interessantes de todo o mundo.
Theon Spanudis (crítico de arte e psiquiatra – “Diálogo”, n. 5)
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