sábado, 6 de dezembro de 2014

MITOS E MAGIA NO CORDEL BRASILEIRO

(o pensamento mítico-mágico do homem nordestino, através da oralidade popular) 

“O cordel é um repositório magnífico de mitos e magia que permitem, ao povo nordestino, momentos de alegria e evasão”. Raymond Cantel, Sorbonne, Paris, em carta ao autor/78. 

“Os mitos não são inventados, são experimentados. Muitos são revelações originais da psique-pré-consciente, observações involuntárias sobre acontecimentos psíquicos inconscientes... e tem um significado vital”. K. G. Jung, “O homem e seus símbolos”.

Insere-se esta I Bienal Latino Americana, realizada no Brasil, em S. Paulo, no contexto da importância sócio-cultural crescente, da América Latina, em sua posição específica e histórica, entre o segundo e o terceiro mundos, e, ainda, dentro do “lamentável espetáculo de seu insucesso político-social”. Tristão de Ataíde, 78. Assim configurada a realidade latino-americana, entre vencedores e vencidos, poderosos e oprimidos, abastados e pobres assalariados, gente contente e gente carente, resultando tudo numa imagem externa de capitulação, e, interna, de imobilismo e sujeição, a massa popular permanece amalgamada, “anulado o homem verdadeiramente livre e humano”. Newton Carlos, 77. 
O povo brasileiro, tirante o índio, de cultura autóctone, é, no quadro sócio-econômico da América Latina, como seus irmãos colombianos, antilhanos e chilenos, um “povo novo”, de cultura transplantada de países da Europa e de nações africanas, de onde emergem as suas raízes culturais e antropológicas, segundo Darcy Ribeiro. Daí decorre, entre outras manifestações, o barroco e o candomblé, o academismo e o fetichismo, os inícios de uma arte advinda da Missão Francesa, o movimento de arte moderna, outras várias influências. , inclusive as Bienais, vindas de fora, embora carregando, esses movimentos e tendências, fortes doses de nacionalismo caboclo. Somos um país de ritos e de mitos, de realidades inventadas e de inventividades programadas, de imigrações de colônias e de migrações de raças, de acomodações e mestiçagens da Casa Grande & Senzala... A literatura nacional de cordel não foge a essa herança, ela se alicerça, desde o século XVIII, em suas origens européias, especificamente na França, Espanha e Portugal, iniciando-se no Nordeste nos ciclos do boi, do cavalo, da vida do campo. Raymond Cantel, 76. 
Assim, o cordel verde-amarelo é cultura transplantada, e reflete, com fidelidade e veracidade, a realidade do homem nordestino latino-americano, em sua dramática situação social, urbana e agro-pastorial, marginalizado e desintegrado, conforme reconhecem até relatórios oficiais. Integra-se no universo da gente sofrida do interior e do sertão, dos habitantes dos grandes centros que também desejam subsistir, em sua ânsia de acreditar e de viver, suportando uma realidade dura e heróica, mágica e fantasiosa, cheia de crendice e superstições. O folheto, popular seja ABC ou romance, armorial e arquetípico, é, pois, pão e subsistência, literatura de sobrevivência, jornal do sertão, feudal e circunstancial. Luiz Ernesto Kawall. É mítico e cosmogônico, divino e heróico. Luiz da Câmara Cascudo. É o coletivo gratificado e a subsistência garantida, a sensibilidade dedilhada e a vivência corporificada e eternizada do homem sertanejo, lenda, imagem e mito do nordestino legitimado e sacrificado. Paulo Dantas. 

Cordel, o cine-maravilhoso do Nordeste
A arte popular é a base para a elaboração de uma arte verdadeira nacional, diz Ariano Suassuna: “... então, todos os problemas do homem existem em todo o lugar. O que compete a nós é procurar a nossa realidade, como Cervantes procurou a realidade espanhola, como Tolstoi buscou a realidade russa”. O romanceiro popular nordestino, o da poesia improvisada e o da poesia tradicional, vale-se do folheto de cordel de forma continuada e temática, como faz o cantador e folheteiro Rodolfo Coelho Cavalcanti, da Bahia, presidente da Associação Brasileira dos Cantadores e Poetas de Cordel, autor de mais de mil títulos diferentes de folhetos. E, quando não, esse trovadoresco cantante e ambulante, cultura típica e espontânea, - e vem, aqui, a sua ligação com o folclore anônimo e a oralidade consciente, - compõe-se dentro de ciclos principais: o heróico, o satírico, o cômico, o picaresco, o do amor ; o religioso e o da moralidade; o do maravilhoso e o histórico e o circunstancial. E há ainda, de tempos em tempos,lembrando os tempos bíblicos os messiânicos. Carlos Alberto Azevedo. 

Em recente reportagem, a revista “Isto É”, mostrou que uma nova tendência, inspirada na licenciosidade do cinema e das revistas pornográficas, se fixa no cordel nordestino: o da licenciosidade. O notável Cuíca de Santo Amaro já vendia, no entanto, esse tipo de cordel nos anos 60, em Salvador. Liedo Maranhão divide a literatura de cordel em folhetos e romances, numa classificação popular, onde, bem se vê, estão inseridos temas de mitos e magia, tese e fulcro da I Bienal Latino-Americana: folhetos de eras de santidade, de conselhos, de corrupção de cachorrada e descaração, de profecias, de gracejos, de acontecimentos, de carestia, de exemplos, de discussão, de pelejas, de bravuras, de ABCs, de Padre Cícero, de António Silvino, de Getúlio, de Política, de safadeza e de propaganda. Uma classificação tão, ou, mais completa quanto às da Casa de Ruy Barbosa, no Rio, e do emérito colecionador, com mais de 8.000 títulos em folhetos, Orígenes Lessa.
No “Folhetim”, FSP, 77, dissemos, e cabe repetir aqui: 
“O cordel é, antes de tudo, e euclideanamente, um forte. Vive, revive, sobrevivente, transcendente... É o telúrico poético e o cantante sonoro da alma nordestina... É o sangue encardido da ignorância letrada e da inteligência aculturada... cultura popular autêntica, crua e fantástica, apolínea e renascentista, também simbolista, gerada na ponta dos canivetes e das giletes. O cordel sobrevive ao radinho de pilha ao progresso dos incentivos, e vence, aos domingos, a aldeia global, o avanço da televisão no agreste e no Cariri, a estrada asfaltada, a casimira sulina, o arame farpado que cerca, agora, a grota funda onde morreu Lampião justiceiro, o açude sudaneiro, a máquina de costura, o carnê e o facilitário bancário, os baús de felicidade e os pelézões... Resiste a tudo e a todos... E o cordel resiste porque não é pobreza nem riqueza, é presente e futuro, dor e mor, estória medieval e História universal, sagrada e profana. Jornal do sertão e inconsciente coletivo do nordestino, sai e se expressa nas vozes capituladas e gemedeiras improvisadas das grandes noitadas de doidas cantorias... Literatura popular e até cultura espontânea - como a filosofia dos ditos de caminhão, dos riscadores de milagres, dos xingos dos capitães de areia, dos jargões de futebol, dos ápodos das prisões, do morro e da favela. Anjo e diabo, messianismo e catequese, o cordel é menestrel, poesia e euforia, canto cantado e espanto encantado, dum provo sofrido e sobrevivido dançando sobre a pobreza limpa. Serve ao doido do sertão e ao neurótico da cidade grande, porque o cordel cura tudo, até dor de cotovelo, marido chifrudo, a vitória da Arena e a derrota do MDB. É a receita e mesinha, uso e costume, ruído e pandeiro, comunicação do gibão e interação do violão, da viola e do ganzá. Da rebeca do Armorial do Recife, feudal e genial, folclore áudio-escutado em circuito ao ar livre, nada fechado, liberto e democratizado, Deus e o Diabo de Glauber Rocha, sem as tiradas sofisticadas e genialidades destiladas rosianas/guimaroseanas.”

O cordel, com seus ritos e magia, é um tronco cultural do Brasil, arte e ciência, popular e real, fantasioso e artesanal, alicerce do povo, fundamentador e catalisador de desejos e vontades, alma de um homem transplantado, imigrado, misturado, aculturado, sudenizado, miscigenado, favelado, roceiro e jagunço, vaqueiro e sertanejo, poeta, soldado e capitão. É porissso mítico - mágico, e também intelectual e imaginário, citadino e agrário, regional e nacional. Está nas praças do povo, como queria Castro Alves, falando da liberdade, nas violas e nas zabumbas nos aglomerados santificados e chagados, como São Francisco do Canindé e Bom Jesus da Lapa nas folheteiras populares de Juazeiro, Campina Grande e Caruaru até em Itabuna do eminente Minelvino Francisco da Silva. Esses folhetos, com seus votos, ex-votos, têm ainda a autenticidade do grafismo popular, as xilogravuras brutas e primitivas dos mestres Noza, Abraão Batista, J. Borges, J. Barros, Palito, José da Costa Leite e do telúrico Dila. A própria ilustração do cordel revela a mitologia popular em toda a sua plenitude. Assim como as trovas são reminiscências dos menestréis dos séculos XIV e XV, as xilogravuras são equivalentes àquelas impressas toscamente pelos artistas populares da Idade Média. Jos Luyten. 
Lélia Frota, 76, em sua sábia advertência-verdade, in “Mitopoética de nove artistas brasileiros”, diz: “A comum inclinação para olhar com condescendência ainda que aprovadora, a arte marginalizada, onde se inscreve a dos “primitivos”, deve, pois, ser reexaminada por nós. Eles não se inserem num mundo à parte, rústico e pitoresco, trágico e socialmente reivindicador, sobre o qual nos inclinamos como expectadores interessados. Apenas exprimem, com valores próprios e uma linguagem de igual importância à nossa, uma realidade interna e externa comum a todos...” 

CORDEL 
Tema museográfico e estudo bibliográfico, lido e escrito, falado e discutido, no jornal, na escola de folclore, na cultura letrada, na sabença universitária, na antropologia brasileira. 
Arte, suor e vivência de nosso povo nordestino. 
Mitos e magia, na realidade latino-americana. 
Caldo cultural universal, que devemos ouvir, ler, discutir, curtir e defender. 

Luiz Ernesto M. Kawall São Paulo/BRASIL 
 I BIENAL LATINO-AMERICANA 1.978.

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