Do imaginário popular do nordeste brasileiro - preponderando em PE, BH, RGN, CE - chaga-nos a literatura de cordel e a xilogravura que “acompanha, em sua vitalidade rude, a saga do romanceiro popular, que passa de mão em mão, de olhar em olhar, de comentário em comentário” (Pontual, 1970) preservando elementos genuínos das representações simbólicas e artes da experiência de vida dos homens do nordeste.
O quadro das relações sociais e que se inserem essas manifestações, as condições concretas do universo em que se concretizam e são utilizadas, tem sido estudado, descrito e discutido por economistas, sociólogos, historiadores.
“A literatura de cordel, produzida por homens que analfabetos, de leitura escassa, ..., tem uma repercussão, na massa de leitores a que se destina, pobre gente descalça e maltrapilha, sertanejos rudes, de alpargatas e chapéu de couro, jamais igualada pela a outra literatura, a de colarinho e gravata” (Lessa, 1973). Ou é ainda Lessa que diz: “Os trovadores populares, que escrevem para gente simples, operários, soldados, artesãos e camponeses, incultos, para a massa mais inculta do Brasil...” (Lessa, 1973).
Jornal/divertimento do sertão e do nordeste, o cordel é um folheto pequeno, impresso em papel barato, na capa uma xilogravura ou clichê. O número de páginas varia entre 8 e16 páginas, sendo os de 24, 32, 48 e 64 conhecidos como romances. A literatura de cordel tem suas origens no cancioneiro ibérico trazido pelo colonizador, mas adquire no nordeste características próprias. Literatura oral, em tempos idos, de cantadores e desafios, de contos e cantos dos sertões, narrações de feitos e acontecimentos, em rimas e sextilhas, se fixa na tipografia e adquire o atual caráter no final do século XIX.
“Cordel se enraizou quando da queda dos princípios mais tradicionais, da decadência da organização rural... Folheto não representa a sociedade burguesa, mas está condicionado às transformações por ela introduzidas... permanece, entretanto o fechamento social e os valores da decadente sociedade agrária.” (Cortez).
Os folhetos são então vendidos nas feiras, são cantados nas feiras, espalhando-se por toda a região. E surgem também a folheterias, onde folhetos são impressos e vendidos. Literatura de cordel, em sua penetração está contida seu significado; 60, 80, 100 mil exemplares são vendidos de um mesmo folheto. Muitas vezes a autoria é encoberta pelo editor, vários editores, muitas versões de uma mesma estória ou uma estória de vários autores. Muitos procuram se resguardar colocando o acróstico precedendo os versos da última estrofe. Pois vivem disso, de serem poetas. “Claro que vivem mal. “Claro que vivem pobremente. Mas são de uma fidelidade quase absoluta à profissão, da qual se orgulham e que lhes assegura a popularidade e a glória. Porque ser poeta no sertão é realmente possuir uma situação que o povo admira, inveja e respeita.” (Lessa, 1973).
E os poetas contam ou recontam uma infinidade de estórias, estórias de heróis, anti-heróis, narrativas maravilhosas. “No imaginário popular, o extraordinário é mais alimentado que e o ordinário, isto é, as correntes de projeção dominam as correntes de identificação.” (Morin, 1963). Manifestações espontâneas elaboradas entre a tensão consciente e inconsciente numa ação integrada. Sua legitimidade encontra uma razão de ser na medida em que abre um canal de satisfação de necessidades simbólicas, em que expressa o pensamento coletivo moldando/moldado a memória popular. “Modo como é construído envolve um saber que leva em conta a reação e a avaliação das pessoas às quais o autor se dirige esse liga no emprego de sua arte. Contar um acontecido depende basicamente deque se faça de conformidade com as expectativas e concepções dos circundantes. Nesse plano traduz em composição verbal as concepções coletivas. ...Conta um acontecido que tem merecimento na concepção de todos”. (Martins, 1975).
O mundo do imaginário, imagem, mito, magia imaginário/imaginante, o homem em sua relação ambígua e difusa com seu meio social consigo mesmo. Mito e magia complementam-se colonizando, ordenando, nascimento, trabalho, sentir, morte. “Intercomunicação entre o imaginário e o real, o lógico e o afetivo, o especulativo e o existencial, o inconsciente e o consciente, o sujeito e o objeto”. (Morin, 1975). Relatos do virtual e possível que acompanha o atual, isto é, singular, limitado, finito no tempo e espaço. O imaginário não só delineia o possível, mas cria mundos impossíveis e fantásticos (Morin, 1969).
Invocação e encadeamento no poema tecem tramas entre o real e o imaginário. “O mito utiliza-se de uma estrutura para produzir um objeto absoluto que ofereça o aspecto de um conjunto de acontecimentos (já que todo mito conta uma história) (Lévi-Strauss, 1970).
“A metáfora, o poder das alegorias, simples palavras e suas evocações poéticas mágicas - o sentido figurado é inalienável, as palavras se organizam em frases, as coisas em universo, os objetos se animam em valores de uso pluralismo coerente onde o significado temporal material é, sendo distinto e inadequado, reconciliado com o sentido, o significado fugaz que dinamiza a consciência, de redundância em redundância, de símbolo em símbolo (Durand, 1976).
Polaridades divergentes, imagens antagônicas guardam sua individualidade própria, sua potencialidade antagonista e se ligam, no temo e no fio do encadeamento dos versos.
“Os mitos não são inventados, são experimentados. Mitos são revelações originais da psique pré-consciente, observações involuntárias sobre acontecimentos psíquicos inconscientes e têm um significado vital.” (Jung, CW 12).
Se, por um lado, produto espontâneo analógico, imediata e simultaneamente analítico e sintético, sendo capaz ao mesmo tempo de totalizar nas representações míticas os aspectos do real positivo em sua observação real, limitado quando apreende as forças invisíveis que governam a sociedade e os homens como um domínio de poderes superiores ao homem; por um lado, é a realidade social e histórica que fornece ao pensamento em esta selvagem seu conteúdo, o material a ser pensado (Godelier, 1971).
Sem dúvida, são as condições concretas da relação que os homens mantém entre si e com a natureza que geram toda uma gama de emoções, sentimentos, visões de mundo e explicações que são percebidas e transformadas pelo pensamento de forma peculiar.
No nosso caso, a vida econômica e social de autores e leitores de cordel se dá em condições dos mínimos vitais e econômicos e sociais. Estão inseridos de maneira desprivilegiada numa formação social patriarcal, de alto equilíbrio sócio-econômico.
O centro do folheto gira em torno da emancipação do herói, de sua ascensão, mas permanece o rigor do patriarcalismo, a pouca abertura social do senhor.
Homens bons através de sentimento religioso se emancipam, assim como valentões e sabichões por meio de suas aventuras e isto sobre grandes monarcas e senhores, isto é, a sociedade agrária. O ápice do folheto é atingir o status do senhor rural. A travessia é uma verdadeira hierarquia de condições impostas. Refletir acerca da travessia do herói só em termos de transformação do herói em senhor todo poderoso é limitar seu real sentido. Também seria uma simplificação compreender a travessia apenas como total das mudanças sofridas pelo herói em busca de ascensão. O sentido da travessia está de acordo com a hierarquia de condições que a instrumentaliza. Para as mudanças solicitadas pelo herói (Cortez, 1964).
O que racionalizou para o cordel a escolha do cabra para ascender sobre o senhor, através de valentia ou retribuição, foi o cangaceirismo. Os cangaceiros são heróis, não a despeito do medo e horror que inspiram suas ações, mas de certa forma por causa delas. São meros desagravadores de ofensas do que vingadores e aplicadores da força; não são vistos como aplicadores da Justiça, e sim como homens que provam que até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis. O universo ético expresso nos poemas e folhetos contem os valores do “ladrão nobre”, tanto quanto os do monstro... Uns são lembrados, como o famoso Antonio Silvino, principalmente por suas boas ações, e outros, como Rio Preto, que se tornaram conhecidos por sua crueldade... num sentido amplo, a “alegria do Norte” ante sua morte talvez como mesura à moralidade formal mas registra também a explicação de um sertanejo de que a morte do cangaceiro se dera pelo fracasso da magia, pois só isso podia explicar sua derrota. Não obstante ser um herói, Lampião não era um herói bom, não são as características do “bom ladrão” que predominam no mito, independente da realidade. (Hobsbawm, 1975).
As figuras humanas do cordel realçam o herói que pode ser ao mesmo tempo o anti-herói. Outros exemplos são encontrados nos ciclos do “amarelinho”, fraco, doente, raquítico como o próprio sertanejo e que vence pela astúcia. No ciclo religioso destaca-se a figura do Padim Cícero, no ciclo da demonologia vemos o inferno associado à casa grande e satanás ao negro, e o herói muitas vezes conseguindo lograr o diabo. O cine-maravilhoso caracteriza-se como formador de associações e imagens por sua vez reflexos da vida do poeta popular (Cortez, 1964), mas ao mesmo tempo o imaginário começa na imagem-reflexo, que ele dota de um poder fantasma - a magia do sósia - e se dilata até aos sonhos mais loucos... Dá uma fisionomia não apenas aos nossos desejos, aspirações, nossas necessidades, mas também às nossas angústias e temores. Liberta, não apenas nossos sonhos de realização e felicidade, mas também nossos monstros interiores, que violam os tabus e a lei, trazem a destruição, a loucura ou o horror (Morin, 1969).
Além dos temas já mencionados, o herói, o anti-herói, o diabo, vários outros são tratados pela literatura de cordel, circunstâncias e fatores de relevo, fanatismos e figuras religiosas, o ciclo dos animais onde se destaca o ciclo do boi misterioso, pois os animais... “são pertinentes em relação à sociedade humana, ou porque a evoquem pela própria vida social (que os homens concebem como uma imitação da deles); ou porque, sem vida social própria, façam parte da nossa. Como os cães, o gado faz parte da sociedade humana; mas faz parte dela, se assim se pode dizer, “associalmente”, já que se situa no limite do objeto (Lévi Strauss, 1970). Há também os temas tradicionais que nos vieram do romance em forma de prosa ou poesia, como a de Lessa, a de Suassuna, a de Camara Benjamim e a de Cavalvanti Proença.
Desvirtuada ou não, atualmente pela penetração da cultura de massa, no cômputo final o que se torna patente é que a capacidade de manifestação autêntica excede concretamente as intenções as intenções do dirigismo cultural. Acusada por alguns de conservadora, reacionária, moralista; vista por muitos como crítica de costumes, sátira pública ou social, o que é importante é notarmos que é a expressão e realização das formas próprias de conhecer e expressar a vida. “O cordel muitas vezes significou uma literatura de resistência, um grito contra a opressão e a miséria. Basta ver que, em geral, o cordel torce contra o latifundiário. Há igualmente uma farta antologia de cantares e narrativas de tom erótico, picante, que circula clandestinamente, arrastando-se sorrateiramente no subsolo da moralidade vigente no sertão do Padim Ciço (Beltrão, Isto é, 1979)”.
E, sempre, é bom ficar ao que nos diz Lelia Frota (1976):
“A comum inclinação para olhar com condescendência ainda que apavoradora, a arte marginalizada, onde se inscreve a dos “primitivos”, deve, pois ser reexaminada por nós. Eles não se inserem num mundo à parte, rústico ou pitoresco, trágico ou socialmente reivindicador, sobre o qual nos inclinamos como espectadores interessados. Apenas exprimem, com valores próprios e uma linguagem de igual importância à nossa, uma realidade interna (e externa) comum a todos...”
I Bienal Latino-Americana de São Paulo/1972.
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