Esta energia que me faz vencer obstáculos e prosseguir pelos caminhos da arte deriva de uma tendência vital desde a infância... Fui sempre uma intuitiva. Apego-me às linhas desde os croquis da juventude até às últimas fases... Nas paisagens intimistas e que têm o valor do momento vivido, captando uma luz, um trecho de rua ou um barco em descanso, a mesma linha indolente flui em todo o quadro realizado... As contradições do drama interior levaram-me a novas experiências e a maior libertação... Construir, estruturar, eis o meu objetivo... Sou, mesmo, uma romântica arquetípica, vivo num mundo fantástico, povoado de vivências dolorosas e paisagens imaginárias.
Wega é a grã-senhora que abre sua senhorial casa de tijolos à vista e alto pé direito, no Guarujá – é a “Ilha Verde”, nome com que a batizou, em homenagem a Victor Hugo. Veste a calça “de pintora”, blusa de listras verticais, os chinelos caseiros. Está mais disposta e entusiasta que há dias, também, pudera, sua exposição de 30 telas na “Documenta” faz um sucessão de público e de crítica. Agora, entrou no movimento Rosa-Cruz, de cunho espiritualista, visando à elevação do ser humano, e segue á risca os preceitos do culto. A casa é ampla e acolhedora, com grandes salas, salões, ateliê num mezanino que domina o grande jardim em ambiente natural.
Já passei pelo abstracionismo geométrico, hoje acho que faço expressionismo abstrato, de fundo onírico e fantástico... Antes, excessos de certezas, levaram-me a novas inquietações, hoje pinto por uma necessidade vital, energética, influenciada pelos fluidos cósmicos e espirituais... Em 1956, voltando um pouco, numa tomada de consciência entre as contradições de então, busquei dentro de mim mesma uma nova trajetória: nascem os desenhos livres, desenhos delineados sem ponto de referência, a mão deslizando sobre a folha de papel em branco, ritmos acordes ao que murmurava Beethoven ou soluçava Noel Rosa... Ritmo, Sinfonia e Carnaval nascidos em noites de vigília, numa tensão e afastamento, marcaram o momento de paz.
Wega vai à moderna cozinha, dá ordem às empregadas. Ela diz que descansa carregando pedras. Tudo que faz tem que ser bem feito. Julga-se uma perfeccionista, e faz tudo para garantir o conceito. Sua casa é um monumento de boa arquitetura funcional – ela mesma fez o projeto, vetando o rabisco inicial de Warchavchic. Comprou 4 mil tijolos em Itu, levou-os ao Guarujá, ajudou o chofer de caminhão a descarrega-los numa noite de chuva, um a um. Em São Paulo, foi às demolições, comprou portas e janelas velhas, altas, nobres, de pinho-de-Riga. Um pedreiro, de Guarujá mesmo, trabalhou meses sob suas ordens diretas. Agora a casa se ergue majestosa, chamando a atenção de quem vai à Praia de Pernambuco, um pouco adiante do Jiquiti-Mar. O pioneiro Warchavichic quando viu a mansão erguida parecendo um palácio vienense de tijolos expostos, beijou a artista, cumprimentando-a efusivamente, chamando-a de “colega”. Wega se espicha num dos canapés, a manta é bordada à mão, de sua terra, Mato Grosso.
Depois, continuei, acreditando na vida e acreditando na arte. Ao ultrapassar a simplificação do desenho, outra necessidade me dominou: a cor... Retomei então a pintura seguindo o desenho... Trabalhava meses num só quadro, ao contrário do que acontece hoje, quando só paro de pintar quando a obra está pronta, horas frenéticas em que me esqueço de tudo e me entrego à pintura de corpo e alma... Queria pintura, plasticidade sem o limite da linha, experiências de matéria em meio a tons e cinzas... Também utilizei areia, terra, serragem e poucos quadros me sobraram dessas procuras. Comecei pintando e desenhando desde os 13 anos. Era figurativa. Tinha um ateliezinho no quarto, espiava pessoas e ambiente de lápis na mão para desenhá-los, ansiosa por descobrir coisas novas... E dizer que estudei piano durante 20 anos!
Wega regride a conversa. É difícil acompanhar a grande pintora – elogiada agora por críticos internacionais como Bernard Denvir e brasileiros como Jayme Maurício, Geraldo Ferraz, Antonio Dacosta e Leo Gilson Ribeiro – pela mansão arejada, cheia de tons marrons das madeiras e cujo chão de lajotas já reflete o por do sol de Guarujá. As grandes telas de Wega se sobressaem pelas paredes. Suas pinturas são “exposições de energia visual assumindo formas de paisagens transcendentes, entrecortadas de montes evanescentes, românticas e expressionistas”.Wega não tem telefone em Guarujá, mas sabe que seu filho jornalista não virá hoje, com os netos Guilherme, Max e Daniela – é dia de fechar a revista “Veja”. Ele é redator especial na Abril.
Voltei então a recorrer aos meios da pintura de todos os tempos... Pelo desacordo entre instinto selvagem – subconsciente marcado pala paisagem arcaica dos pantanais de Mato Grosso, árvores em flor, aves, animais – e atrações de universalismo. Tento reconstruir pontes e naus, cidades, sonhos, São Paulo, arcadas, noturnos, naves, topografias, solidões, transparências, palpitações, sonoridades, luminárias, galáxias... Começo à pintar à tarde e entro pelo noite a dentro, dominada por uma energia vital que desce pelo braço, por fluidos e emanações cósmicas, que me inspiram... Ás vezes, saio um pouco ao jardim, sozinha, respiro ar puro, vejo a lua e me sinto perto dos céus.
Cotidianamente, acorda à hora necessária para orientar o trabalho da casa. Faz as compras, dá ordens ás empregadas, providencia tudo. Vê a correspondência. Está de regime, come pouco, seleciona os pratos. Seu nome está firmado aqui e na Europa. Tem sempre exposições em pauta. Acha que já fez mais de mil quadros. Só de paisagens imaginárias, uns 700. Também faz retratos, como o de Alice Arrobas Martins, que começou no Guarujá e acabou em São Paulo, no dia da exposição. Leituras atuais: “A Vida das Formas”, do crítico Focillon e “Poesias” de Fernando Pessoa (uma das poesias é a história de Cristian Rosencrutz, fundador do movimento Rosa-cruz). À noite, quase sempre, escuta Mozart ou Chico Buarque. Nos fins de semana recebe inúmeros amigos, críticos, compradores – e Wega vende bem. Às vezes ensaia uns quitutes, doce de leite, arroz doce bem apurado, peixes e camarões e outros pratos. Tem amigos em penca e cultiva-os, com seu afeto maternal.
A arte brasileira atual está se firmando, com seus vários caminhos... É preciso, contudo, que os novos valores que iniciam uma progressão sejam mais humildes e menos arrogantes... Hoje a nossa arte é reconhecida lá fora, e isso vale muito em t ermos de prestígio e comerciais também... Quanto a mim, se não pintar não sei fazer mais nada, pinto por necessidade vital... Já passei por muitos percalços na vida, fui massacrada algumas vezes. Hoje sou reconhecida e posso dizer sem falso orgulho que tenho um público aqui e no estrangeiro... Mas não é isso que vale, luto por alcançar paz espiritual, sossegar desta terra, ir embora para outros mundos, alcançar o plano de libertação universal.
Wega confessa sua esperança de libertação, de transfiguração do eu, de integração no cosmo espiritual... Ela termina dizendo que na outra vida – vida? – quer viver entre crianças, terra, mar, chão, rosas e perfumes. Em libertação. Com paz.
Publicado originalmente no jornal "A Tribuna", de Santos, em 14.5.72.
COMENTÁRIOS CRÍTICOS:
Uma artista de libertação criadora
Decorrência de um desenho pelo qual havia abandonado suas preocupações figurativas, desenho a que chegou intuitivamente mas que alicerçou sempre na projeção buscada na boa imagem, busca intencional, a pintura atual de Wega adquire de súbito uma importância original e viva. Depois da longa experiência polêmica com a divisão do espaço, com uma noção bem informada do contraponto de convexidades e concavidades decorrentes sempre daquele desenho – o prêmio que obteve na IV Bienal – Wega decidiu fazer de sua pintura um amontoado de formas, as quais trazem sua consistência dum mundo interior de significados, como salta à vista nos quadros aqui expostos. É uma pintura que adensa o tema tratado, na série de quadros noturnos, com uma contínua concatenação de dados, que fremem na superposição quase barroca, mas sempre definida em desenho, mesmo quando este se encontra escondido sob a vegetação da floresta, na elaboração evocativa das arcadas, ou nesse poderoso conjunto de brancos na pauta silenciosa. Óbvio em alguns casos, esse desenho não era ainda o alargamento da visualização de Wega, o que se dá nos quadros de claridade meridiana, posteriores àquela solidão romântica de noturmidades. Então a pintora como que se levanta na adoção de um temerário feito de ascendências. Ela transpõe para a tela ao clarão que a iluminou uma topografia de paramares, dentro da qual encontraremos muitas vezes pontos de contato com a “avenida da liberdade” de que nos fala Arnheim, em que coincidem os fatores da eliminação do conflito entre quadrado e círculo de uma terceira dimensão. Está assim desdobrando a atenção para desvãos plenamente realizada a topografia ascensional, animada, vibrantemente, por uma compreensão intensa do dinamismo estrutural. Recordaríamos, ainda, a conscientização daquele desenho, transportado aqui para a pintura, dando-lhe essa intimidade de energia luminosa, em plano que indicam a chegada da pesquisa à extrema situação interposição, quando Ratoosh nos fala de como pode ela funcionar: “A interposição pode procurar um indício só nos pontos em que se encontram os contornos dos objetos” para concluir com esta outra formulação eficiente: “O que sucede em um ponto de interposição é independente do que sucede noutro”. Daí a som a de acontecimentos que se cruzam nesta topografia afirmativa, em que nos quadros de grande formato a pintora consegue produzir todos os efeitos da concatenação composta de referências simultâneas harmonizadas.
Não há ambiguidade de expressão nesta pintura ascensional pelo tema, pelo tratamento, pela resultante. A mesma atmosfera envolve estas “encostas atônitas” convocadas para a subida, para a elevação, condicionante de uma situação espiritual bem definida em Wega. Na solidão de um trecho litorâneo diante do mar, tomando uma flama que lhe fornece forças para dominar tamanhos espaços, não obstante as limitações cardíacas verificadas, Wega sobe estas escarpas, sem abandonar nada de seu impulso lírico, antes desdobrando-o à solta, como nesse incrível retângulo “Canção Azul”. É uma alegria imperdoável contemplar esses espaços povoados por uma artista das mais bem dotadas de sua geração, em seus movimentos de libertação criadora. É alegria e é profunda emoção.
GERALDO FERRAZ – Catálogo da Sala Especial de Wega, na VII Bienal de São Paulo, 1963.
Wega gestual. E imaginária. Emoções...
Conheci a Wega em 55, melhor desenhista nacional da IV Bienal. Pouco conhecida. Localizei a mulher morena, com traços índios, mato-grossense fixada em S. Paulo. Entrevistei-a para a “Tribuna da Imprensa”. Wega de traço exímio.
Anos mais tarde, colaboro na “A Tribuna” de Santos. E fico editor de Artes Visuais da “Folha de S. Paulo”. Grandes tempos, o rodamoinho das artes e dos artistas. Reencontro a Wega. Já gestual, pintando óleos magníficos, sempre imaginários e poéticos.
São os tempos de uma amizade que se solidificou. Conversas ao telefone e ao pé d’ouvido. Ela e Geraldo Ferraz, na Ilha Verde, a gente almoçava e tinha longos colóquios. Geraldo duro e implacável, reta inteligência. Wega amainando o tom derramado das conversas.
Quando lancei “Artes Reportagens”, em 73, 453 livros vendidos no vernissage, na Cosme Velho, eles vieram do Guarujá. Depois, teve o lançamento em Santos. Mais badalação pro pobre repórter. E os queridos Wega e Geraldo me ofereceram um jantar no Marrero. Gestos de afetividade nas artes, inesquecíveis.
Há alguns anos, a retrospectiva de Wega no MASP. Sua individual na Sub-Distrito. A grande artista de sempre. Ainda gestual. Sempre imaginária. Poética e jovem, adaptada à modernidade. O Geraldo se foi, como estrela luminosa. Vem o Tom, o filho, escreve bonito sobre a Wega-artista e Wega-mãe. Emoção. A Wega, toda, agora, na Galeria S. Paulo da Regina Boni.
Gente, são tempos de saudade, recordações, emoções... A arte das emoções de Wega Neri Gomes Pinto.
Arte imortal.
Luiz Ernesto Kawall
27.10.89
PINTURA DE WEGA
À tona do mundo irrompem
Os mundos de Wega
violentos
verdinatais, vermelhoníricos
sobressaltando a natureza.
O último? o primeiro
dias da criação implanta
a densa vida tensa
em que a terra é criação do homem
e a criatura revela sua íntima
dramática estrutura.
Carlos Drummond de Andrade – As Impurezas do Branco – 1ª ed. p. 102.
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