segunda-feira, 10 de novembro de 2014

BARDI E OS PINTORES ESQUECIDOS

- A semana de 22 foi coisa de ricos; os pintores de parede, menos afortunados, os pintores de arrabalde, ficaram de fora. O pessoal grã fino da Semana- e basta dizer que René Thiollier era secretário do movimento - deixou de fora um Reis Jr, um Visconti, um Volpi, e tantos outros. Por isso proponho um debate objetivo, revisionista de 22, convocando para tal, críticos, historiadores, sociólogos, artistas, todos que se interessem pela nossa cultura, mas cultura com C maiúsculo, não a dos versos de Guilherme de Almeida. Por isso, também, o Museu de Arte de São Paulo passou a se interessar, de uns tempos para cá, nesses pintores de 80 anos, esquecidos desde 1922, mas cuja produção é da melhor qualidade - como, por exemplo, Perissinoto, Zorlini, Angelo Simeone, Inocêncio Borghese, R. Galvez, Waldemar Belisário e outros. 

O prof. P. M. Bardi emerge com seu dinamismo peninsular da montagem da “Festa Brasileira” no MASP, uma exposição de 12 artistas ingênuos e primitivos, que lhe sugerimos há dois anos. Os 70 anos parecem sempre estar revigorados, nesse “anima e cuore” das artes em nossa terra. Bardi continua, sem papas na língua, com o sotaque milanês que os quase 30 anos de Brasil não esconderam: 

- Esses pintores de 80 anos, verdadeiros operários da pintura, eu os estimo como velhos artistas, mas, também, como artistas que vão ao campo e armam seus cavaletes, resumindo num papel a impressão da natureza. São e conservam-se fiéis à sua arte e ao seu assunto. Não são compiladores de longos currículos, não se apegam, aos modismos que se jogam nas bienais com as etiquetas da moda corrente em Nova Iorque, não fazem essa dita arte conceitualista. Participam de um grupo e de uma espiritualidade honesta e, portanto, o Museu de Arte os homenageia freqüentemente com exposições e retrospectivas. 

Bardi está querendo reformular o Museu, com têmpera e ação. O MASP vai ter, afinal, uma lanchonete e vai abrir à noite. O novo presidente do Conselho de Orientação, ex-governador Roberto Sodré, tem outras idéias de renovação, que coincidem com as de Bardi. O professor atende assessores e jovens estudantes, já volta à contundência verbal que sempre o caracterizou: 

- Expusemos agora o Waldemar Belisário, que fui buscar na Ilha Bela, pintando com rara disposição e conhecimento, belas paisagens litorâneas Ele foi discípulo de Ficher Elpons, tendo aproveitado também algumas aulas de sua irmã de criação Tarsila do Amaral. Cursava à noite, o Liceu de Artes e Ofícios, recebendo aulas do prof. Enrico Vio. Ele foi um dos organizadores dói Salão Paulista de Artes Plásticas, no Palácio das Indústrias, em 1922, que cedeu com muito custo, uma sala para essa finalidade. Devo dizer que naquela época não havia galerias de arte na cidade e só pintor rico conseguia com muito dinheiro, alugar uma sala para expor. Pois o Belisário expôs aqui no Museu, vendeu bem, teve apoio da crítica do público. Por que a Universidade, os críticos, os pesquisadores, não entrevistam o Belisário, o Borghese e tantos outros pintores esquecidos das nossas artes? Por que não se faz, afinal, a revisão de 22 e do nosso modernismo? Expondo-os, atraindo as vistas do público para os belisários, borgheses, perissinotos, simeones, zortinis e tantos outros, acho que o Museu de Arte paga um pouco do que São Paulo deve a eles todos, que lutaram pela cultura do país e foram desumanamente esquecidos. 

ALGUNS ESQUECIDOS 
Waldemar Belisário

Waldemar Belisário, uma figura da Escola Paulista que deverá ser admirado”, MÁRIO SCHEMBERG. “Uma surpresa! Sempre é tempo para conhecer um artista que embora meio-escondido aparece para nos comunicar sua personalidade inconfundível”. ARACY AMARAL

Inocêncio Borghese é um operário da pintura, um dos últimos que vai ao campo... quando o velho Borghese conta suas aventuras, abrem-se as páginas dos anos fantásticos de S. Paulo... aluno de Salvatore Parlagreco, Borghese conviveu com o grupo de pintores que formou a elite do academicismo nacional, desde Parreiras e Carlos Oswald, Batista da Costa e Luiz Graner.” P. M. BARDI.

R. Galvez, que atuou na época do Santa Helena, com altiva participação nos movimentos artísticos dos anos 30 e 40, é um excelente pintor e escultor que deverá interessar aos pesquisadores da estética da época. Expõe agora ,após 32 anos, na Praça Roosevelt, Galeria Portinari, a partir de 3 de julho”. T. HARUMI. “Angelo Simeone, criança, veio ao Brasil. Seus pais eram imigrantes que deixaram Cápua...

Em Simeone florescem traços desse meridionalismo. No início foi pintor de parede. Outros colegas seus também produziram nesse ofício e também foram admiráveis. Ângelo Simeone é bem um exemplar oposto a esse carreirismo desenfreado que por aí campeia avante... Um dia, como Volpi e outros, de pintor de parede, passou a pintura de cavalete... aí colocando a chama de seu espírito”. PAULO MENDES DE ALMEIDA. 

Ottone Zorlini

Ottone Zorlini, eis um outro artista que se deve associar ao grupo Santa Helena. Ia a campo com Volpi e Zanini. Os três são da mesma família, provocavam uma expressão livre e franca.... Quando pinta é artista de outro calibre: pinta para o gosto de fazer impressões exclusivamente para si mesmo: vocação de “petit-maitre” da paisagem, captador de atmosferas, de horizontes agitados de tempestades, de ambientes aldeianos, praias e montanhas. O Museu de Arte o homenageia com esta comunicação”. P. M. BARDI.

Perissinoto, contemporâneo de Bonnard e Vallard que então faziam suas rotas pela França ensolarada. Impressionistas ainda, seguindo os ensinamentos dos mestres Corot e Monet, eis o artista percorrendo o Centro-Sul do Brasil, elaborando, sobre uma realidade, toda sua fantasia”. RENATO MAGALHÃES GOUVEIA.

“Filho de construtor, Perissinoto veio menino da Itália. Começou a pintar por vocação... Perissinoto com seu grupo, e mais tarde os santahelenistas, seguiram os modos franceses... Corot ou Cezànne foram, também operários dessa categoria: acharam o meio de juntar à história da pintura uma expressão nova, de alto valor”. P. M. BARDI. 

BELISÁRIO: FIZEMOS UM OUTRO
- A Semana de Arte Moderna de 22 foi feita pela turma que tinha dinheiro. Nós, os pintores de arrabalde, os pintores de domingo, não pudemos participar. Ficamos de fora. Organizamos e fizemos, porém, o I Salão Paulista de Artes Plásticas. Foi a maneira que encontramos para participar da renovação artística de então e à qual muitos de nós conservam fieis até hoje.

Waldemar Belisário completa 80 anos dia 20 de setembro (1975). Ao lado de sua mulher, também pintora, Celina Guimarães, Waldemar está no Museu de Arte de S. Paulo, no mezzanino do porão, onde esse velho pintor paulista, nascido a 20 de setembro de 1895, na rua Visconde, hoje avenida Rio Branco, expõe 40 telas à óleo - datadas de 1922 a 1975. O prof. Bardi - que foi buscar em Ilha Bela, onde vive retirado e dedicado à pintura e ao folclore, Aracy Amaral, Mario Schemberg, Volpi, Charoux, Niobe Xandó e Maria Bonomi, entre outros, deixam no livro de registro palavras de espanto e encantamento para a obra pictórica de Belisário.

Waldemar Belisário, filho de Antonio Belisário e Fortunata Pelizzari, italianos naturais de Vincenza, tendo sido seu pai um artista virtuoso em marchetação e escultura em madeira e restaurador de móveis e peças antigas, diz ter passado sua adolescência na Europa, entre Itália, França e Alemanha, onde desenvolveu seu pendor pelas artes em convívio com artistas e museus. Seu contato com os modernistas foi evidente:

- Fui discípulo aqui no Brasil de Fischer Elpons, tendo também aproveitado algumas aulas de Pedro Alexandrino no ateliê de Tarsila do Amaral, minha irmã de criação, pois seus pais, os Estanislau do Amaral, eram meus padrinhos de batismo. À noite, eu cursava o Liceu de Artes e Ofícios, recebendo aulas de desenho do prof. Enrico Vio. Mas, voltemos à Semana de 22. A turma que fez o movimento tinha dinheiro... O movimento começou lá por 1921, fiquei a par de tudo, conheci o Graça Aranha no atelier da Tarsila e ele falava muito no modernismo e na organização dessa Semana de Arte Moderna. Depois, ela foi para Paris, e não participou da Semana no Teatro Municipal e eu fiquei aqui, trabalhando, estudando e pintando.

Conta Belisário que, deflagrado o processo de 22, percebeu logo não ter recursos para participar do movimento. Naquela época, pintores como ele, não vendiam quase nada. “O artista era considerado um pária. Ninguém conseguia uma sala para expor, só os pintores ricos... Não havia galerias de arte. E, no entanto - diz Belisário com um laivo - fui colega de Jenny Klabin, de Maria, filha de Washington Luis, e de gente importante, no curso de Elpons... Mas o grupo principal de pintores e artistas, que se consideravam modernistas e revolucionários, como Oswald, Mario, Menotti, Guilherme e outros, eram os que dominavam, eram ligados aos ricos e poderosos de então. Que fazer? Belisário, ali no Museu, entre suas telas de elaborada técnica, vai contando:

-Resolvi fazer um Salão de Arte de S. Paulo, foi ideia minha e do Manzo, também pintor Organizamos o Salão a muito custo, uma de suas salas, no prédio da Várzea do Carmo. Talvez meus estudos com Elpons e Vio, talvez o fato de que tivesse ganho, em 1916, um prêmio no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, tivessem influído para que, em torno de mim, se congregasse um grupo de artistas, que participou do I Salão. Os pintores e escultores que participaram foram, além de mim, que fui o melhor sucedido, vendendo 5 telas, do total de 10 vendidas, Bernardino, Ataíde, Cozzo, Agostini, Larocca,Lombardi, Pavan, Prado, Rossi Osir, Perissinoto, Tarquinio, Angelo Simeone e outros.

Explica Waldemar Belisário que o grupo tinha uma certa unidade, além da principal, que era o de serem artistas pobres. A tendência do grupo não era o modernismo avançado de 22, justamente, em muitos pontos, o contrário. Eram mais ligados por serem artesãos do ofício de esculpir ou pintar, unicamente. “Éramos quase todos pintores de domingo, pintávamos paisagens, figuras, naturezas-mortas, tudo... O Volpi já era pintor - de parede como tantos deles, que vieram depois, como o Zanini e o Rebolo também eram - e não sei porque não aderiu logo a nós. Éramos sim paisagistas de arrebalde, éramos empreiteiros e caiadores de casa. Ganhávamos a vida assim”.

-O público compareceu escassamente - diz Belisário - ao Salão. Não tivemos críticos, apenas o único que compareceu, foi o Monteiro Lobato, que fez uma crítica na Revista do Brasil. Mas se a repercussão não foi muita, como a da Semana de Arte Moderna, o resultado moral foi extraordinário, pois iniciamos o movimento de conjunto, para realizar uma arte fiel que representasse S. Paulo e seus verdadeiros valores e ainda conseguimos arrebanhar muitos pintores que estavam esquecidos e que ingressassem em nosso grupo depois, nos anos das décadas de 20 e 30. No correr dos anos, tivemos pouca ligação com os revolucionários de 22, todos ficaram famosos, tinham possibilidade de promoção dos críticos e dos jornais. E assim foi.

Conta que o pessoal participante do Salão, obteve frutos: Cozzo foi para o Rio, Bernardino, para Itanhaém, Rossi Ozir fez um grupo e até uma firma, a Ozirarte, onde trabalhavam Zaninni e Volpi. Muitos deles frequentaram o Santa Helena, “mas muitos que dizem terem estado lá, na verdade nunca estiveram naquele ateliê de verdadeiros pintores paisagistas e do natural. Entre eles, recorda-se, figuravam o Rosa, Saia, Pennacchi, Rebolo, Zaninni, Volpi e Manuel Martins. Quanto a ele, Belisário, em 1930, foi candidato ao Prêmio Viagem à Europa, tinha a proteção de Olívia Guedes Penteado e Julio Prestes... Iria certamente na primeira vaga como adido à Embaixada da França (“como o Graciano, hoje”), mas Getulio resolveu amarrar o cavalo no Obelisco. Prestes foi barrado e fiquei a ver navios... Em S. Vicente, pintei um quadro com esse tema, conheci Martins Fontes, que me induziu a conhecer a Ilha Bela, onde conheci a professora Celina Guimarães, também pintora, e onde resido alternadamente com a capital, desde 1936. Entrementes, expus em Santos, Porto Alegre, São Paulo, ganhei prêmios, participei da I Bienal e realizei exposições na Domus, com Celina, Waldomiro Siqueira, Di Preti e Wladislav, e na Seta, em 1970”.

Belisário conta outros lances de sua vida de pintor e apaixonado do folclore da Ilha Bela, que procura retratar em suas telas, além das paisagens da Ilha, que considera paradisíaca. Entre 1941 e 1964 viveu em S. Paulo, participando de exposições e lecionando na Escola Britânica e no Ginásio do Estado. Na Ilha Bela, há pouco tempo, surge-lhe à frente a figura do prof. Bardi, procurando pelo pintor da Ilha. Era ele. Bardi conheceu então - e se admirou - a sua pintura. Comprou uns quadros. E convidou para uma individual-retrospectiva no MASP. “Aqui estou, pois, no limiar dos 80 anos, Achando-me o mais velho dos pintores vivos, mais velho mesmo que o Volpi, que ainda não chegou aos 80”. Comprei tintas em S. Paulo, revi os amigos e não vejo a hora de voltar à Ilha Bela, estimulado, reconfortado para pintar a minha pintura onde procuro ser autêntico, ser natural, reviver o nosso folclore, a nossa arte, o nosso povo e seus temas”. Belisário não terminou ainda, faz sua profissão de fé, as luzes do Museu estão prestes a se apagar:

-“Acho que valeu a pena a nossa luta. Acho que o artista deve se renovar cotidianamente, de acordo com seu estado de espírito. Sou contrário à pintura repetida, estandartizada, que se plagia a si própria. Sempre fui sincero com a mina emoção, eis tudo. Respeitei os antigos, como Gauguin, Cézanne, Van Gogh, os modernistas como Matisse, Vlaminck, e outros. No Brasil, minha admiração vai a uns poucos pintores, não desejo desgostar ninguém, mas destaco apenas Portinari - com exceção das influências que recebeu - e o Volpi dos anos 30. E, claro, meus colegas paisagistas e pintores do natural, dos arrabaldes e das marinhas, capazes de pintar com emoção a atualidade. LEMK.

FOLHA DE SÃO PAULO/FOLHA ILUSTRADA/SÃO PAULO 
DOMINGO, 29 de Junho de 1975/ARTES VISUAIS

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