Manezinho (Manuel) Araújo nasceu a 27 de setembro de 1910, na cidade do Cabo, Pernambuco. Pintor e muralista. Viveu no Recife a partir de 1916, ali cursando a Escola de Comércio. Aos 23 anos de idade veio para o Rio de Janeiro, como cantor de emboladas, incentivado por Carmem Miranda e Almirante. Trabalhou no rádio e em cassinos até 1957, conquistando uma popularidade imensa, gravando mais de 100 músicas tipicamente regionais. Abandonando a carreira musical abriu o Rio, o restaurante “Cabeça Chata”, que logo se transformou num grande sucesso, com suas comidas típicas nordestinas. Em 1962 transferiu-se para São Paulo, montando também aqui o “Cabeça Chata”, que fechou alguns anos depois. Na pintura iniciou-se em 1950, autodidatamente, aceitando um desafio de sua mulher (que agradece até hoje). Em 1954, por influência de Augustinho Rodrigues, inicia-se no figurativismo ingênuo. Em 1955 faz sua primeira exposição, numa coletiva da Escolinha de Arte do Rio. Desde então, e até sua próxima exposição (em junho) na Galeria de Arte “Alberto Bonfiglioli”, realizou 50 mostras individuais e coletivas no Rio, S. Paulo, Recife, Paris, Lisboa, Santos, Guarujá, Porto Alegre e João Pessoa. Publicou em 19678, com apresentação de Aldemir Martins, um álbum de serigrafias, “Meu Brasil”. Possui quadros no Museu da Fundação Gulbekian, em Lisboa, no Museu de Arte Moderna, em S. Paulo e Museus Regionais de Porto Alegre, Araxá, Olinda e Feira de Santana. Casado com D. Adelaide (Lalá) Araújo, mora em S. Paulo, à Rua Augusta, 941, apto. 42.
– Minha pintura reflete meu amor permanente pelo Brasil... Minha vida, hoje, são essas minhas telas ingênuas, folclóricas e telúricas... Procuro transmitir nos meus quadros uma realidade que gostaria que existisse. Quando vejo uma favela, pinto-a sem retratar sua autenticidade infeliz e vencida... Ao contrário, por temperamento e por filosofia, coloco só matizes alegres e coloridos nas elas que elaboro... E meus quadros, como meus personagens, são felizes.
Manezinho Araújo se sacode todo numa gargalhada sonora, famosa desde os tempos do “Banho do Passarinho”, no Recife, ou da “Taverna do Glória”, no Rio, na década de 30, quando ele e seus companheiros iam afogar tristezas e cantar alegrias até o sol raiar. Leônidas da Silva, seu dileto e maior amigo, está ali, pra dizer que Manézinho conta só a verdade. O pintor ingênuo que se recusa a considerar-se um “primitivo”, está eufórico: a Galeria de Arte Alberto Bonfiglioli vai expor em junho 40 telas, toda a sua coleção “Brasiliana”, que ele vem pintando com minúcia e amorosamente nos últimos tempos. Lalá, sua mulher, responsável maior pelo seu início na arte de pintar – quando era então o “Rei da Embolada”, conhecido de Norte a Sul do País, – e Iracema, a mulher de Leônidas, compõe a roda no apartamento-ateliê de Manézinho. Hoje é dia de bobó de camarão, que ta,bem recorda ao anfitrião seus tempos de mestre cuca, à frente do também famoso “Cabeça Chata”, onde tinha lugar certo, sempre, altas autoridades da República e as mais conhecidas figuras dos meios culturais e esportivos. Manezinho tira da velha cômoda uma carta recente, é de Jorge Amado, veio pelo correio nestes dias. Ele lê com sua poderosa voz de nordestino curtido no Sul o texto de seu grande amigo escritor e que servirá de apresentação do catálogo da “Brasiliana”:
– Um artista múltiplo de várias artes em todas competentes de real talento, de apurado gosto, sem ser único na condição brasileira, marca de sua personalidade em cada setor onde exerceu ofício e arte.
– Longamente poderia eu falar do cantor popularíssimo, em sertã época um dos reis do rádio, sem igual nas emboladas nordestinas, imitado por legião, aclamado por todos. Cantar foi sua arte primeira e admirável. No ritmo da embolada seu nome faz-se famoso, mais do que famoso, querido, em todo o Brasil: Manezinho Araújo símbolo do que havia de mais puro na música popular brasileira, cantor brasileiro por excelência.
– Também na arte suprema, na divina e sublime arte da culinária, foi mestre e que mestre! Cozinha brasileira, é claro, pois aqui já se disse ser aqui ser a qualidade brasileira a marca unitária de tudo quanto Manezinho Araújo realizou. Possuiu restaurantes e dirigiu cozinhas de grandes hotéis. Pra se ter idéia de sua competência, basta contar que dirigiu cozinha de hotel baiano, e não sendo nascido em terras da Bahia, sabe culinária baiana como poucos, mestre de vatapá celebrado e de um efó da mais alta classe.
A campainha toca, Manezinho interrompe a leitura. É Célia Cotrim Alves, da “Bonfiglioli”, quem veio filar a “bóia” da Lalá e Manezinho, que o bobó do casal não se rejeita neste mundo. Logo depois, entra o casal Tite e Ivo Zanini, ele jornalista, presidente da Comissão Estadual de Artes Plásticas. O grupo aumenta. Manezinho, com a carta de Jorge Amado às mãos, corre ao ateliê, o pessoal quer ver, um a um, todos os quadros da “Brasiliana”.
Célia cita palavras do crítico Roberto Pontual, autor do “Dicionário de Artes Plásticas do Brasil”, sobre a pintura de Manezinho Araújo: “Sua pintura de caráter ingênuo fixa tipos e tremas populares do folclore nordestino e do Brasil em geral, com intensa vibração cromática e de uma geometrização das formas”. A admiração pelas telas que Manezinho tira vaidosamente dum grande armário, é geral. O pintor aproveita a platéia atenta, sapeca mais um pedaço dos escritos de Jorge Amado:
– Onde, porém, veio realizar-se por completo, foi na pintura. Desde os tempos de cantor e mestre-cuca, proprietário de restaurantes de comida nacional, bolia com as tintas e os pincéis. Pouco a pouco seu nome ganhou cidadania nos circuitos de das artes plásticas como um dos mais agradáveis pintores primitivos e se firmou em meio dos colecionadores exatamente porque sua arte mais uma vez se exerceu em função do Brasil. Quem primeiro alertou o País para a pintura de Manezinho Araújo, foi, se não me engano, Assim Chateaubriand a quem encantava a recriação da vida brasileira que é o tema fundamental do pintor. Esse Brasil colorido, ingênuo e pitoresco, fixado na tela por Manezinho, e levado para exposições na Europa pelo ilustre jornalista, lá obteve ruidoso sucesso.
Leônidas deixou o ateliê, voltou à sala e ao seu bobó. O velho “Diamante” está luzidio e enxuto como sempre. Agora está deixando a Jovem Pan, sua ocupação é só com a Secretaria do Trabalho onde dirige o setor de Promoções Esportivas, e suas construções. Manezinho, já de volta, abre o rádio, a Bandeirantes está irradiando o histórico “gol de bicicleta” de Leônidas, 30 anos atrás, no Pacaembu, S. Paulo x Palestra Itália. Na gravação, várias vezes, Geraldo José de Almeida grita que “o bonde de 200 contos fez um gol de bicicleta”... assim aludindo à compra de Leônidas pelo S. Paulo F. C.m, na época... Manezinho, um dos responsáveis por Leônidas ter trocado então o Rio por S. Paulo, ri e declara: “Como Leônidas, igual a ele, seja como artífice de vitórias, artilheiro, comando e liderança em campo, garra e técnica, nunca houve jogador melhor no Brasil!” Leônidas sorri de leve, aceita mais um uísque que Lalá gentilmente oferece.
Manezinho também entra no bobó e no uísque, nesse domingo festivo não está de regime. Aos sábados também garante uma boa feijoada, ali na Rua Augusta mesmo. Hoje em dia, não gosta de cantar embolada, embora continue arisco e com voz esmerada se o quiser fazer.. Ele gosta mesmo é de pintar – de manhã, à tarde e á noite – e de nos fins de semana receber os amigos, Leônidas e Iracema, o jornalista Audálio Dantas, Deodato o escultor, o cômico Zé Fidelis, seu medico Moricheswki. Nestas horas, “e afoga” um pouco, confessa, recordando os tempos dos carnavais cariocas, quando músicos, artistas de rádio, jogadores de futebol, saíram no grupo “Traíras da Lapa”, bebendo até de madrugada... Manezinho comenta que a arte brasileira precisa de pintores que pintem mais o Brasil, como um Aldemir Martins, por exemplo, um “artistaço”... Diz que se considera realizado como cantor de emboladas, que fez época em seu tempo, e como proprietário com Lalá, do “Cabeça Chata”, no Rio e em S. Paulo... Mas em arte, ainda está depurando, essa “Brasiliana”, conta, está dando o que falar, e a mostra ainda não foi inaugurada... Neide Bonfiglioli, a vistosa loira dona da galeria, já está anotando os pedidos de reserva das telas da “Brasiliana”, são 40, os preços variam de 3 a 10 mil... Manezinho está solto em sua camisa grená, jovial, situa sua pintura como “ingênua araujina”, diz que acredita no Brasil acima de tudo... Lembra de sua mãe, d. Juventina que o inspirou e o protege na sua arte de pintor ruminando à consagração, e do velho pai, filho de portugueses, “seu” José Bonifácio. E todos querem ouvir, agora, o final da apresentação da “Brasiliana” de Jorge Amado, Manezinho põe os óculos, lê grave:
– Estou diante dos quarenta quadros da “Brasiliana” de Manezinho Araújo – uma exposição de grande força evocativa, uma festa de cores, do Rio Grande do Sul à Amazônia, da querência do seringal. Manezinho Araújo documentou, em quadros onde a arte do pintor se expande numa indiscutível qualidade de ofício, toda a vida popular brasileira, no campo e na cidade, no trabalho duro e na festa tradicional, na alegria e na tristeza, na religião dos pobres e nos folguedos de carnaval. Vejo as paisagens do Sul, do Extremo Norte, do Nordeste, vejo as cidades, as feiras-livres, as flores, os pássaros, as mulheres, as ruas típicas, a grandeza do Pelourinho na Bahia, a face antiga de Ouro Preto, os fortes e os pequenos cais – “Ver o Peso”, a “Rampa do Mercado” – de saveiros e barcos, o trabalho na colheita de café, nas roças de cacau, na floresta amazônica, nas plantações de babaçu, no carnaval, na labuta do algodão. Toda a vida brasileira está fixada nestes quadros tão nossos, trabalhados com tanto amor.
Sim, eis a arte feita com amor, amor de um homem bom, cujo talento e cujo ofício foram colocados a serviço do maior conhecimento da paisagem física e humana de nossa terra, talento e ofício exercidos na paixão pelo Brasil.
O burburinho aumenta na Augusta, da janela do apartamento do pintor se vê o povo alegre e dominical que deixa os cinemas da rua – é a sessão das quatro que chegou ao fim. Manezinho mostra peças de sua coleção, cerâmicas de Vitalino, entalhes de Chico Santeiro, fotos emolduradas do padre Cícero, telas de Aldemir, Campello, José Antonio da Silva, esculturas de seu amigo Deodato, lembranças de todo o Brasil, – Brasil que conhece de ponta a ponta, de Norte a Sul. Só que agora, se tudo der certo, quer conhecer a Europa. Ele e Lalá, levando Leônidas e Iracema. No ano de 74, ainda a tempo de pegar a Copa do Mundo na Alemanha. “Pena que o nosso Diamante Negro não seja mais nosso centroavante”, diz recordativo e ingênuo. Manezinho Araújo, dando um tapa de amizade na calva famosa e retinta de Leônidas da Silva.
A TRIBUNA
Santos, domingo, 28 de maio de 1972.
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