-“Estou me recuperando, como posso, e com a ajuda dedicada da Mafalda, de um pequeno derrame, e de renitente arteriosclerose... Vivo de aposentado como médico do Juqueri, como escritor não, não me deram por causa das prisões... Leio arte e filosofia, mexo nas minhas coisas, nos meus escritos, continuo marxista... Raciocino pior agora, e tenho alguma dificuldade para ler, mas, acho, também já cumpri a minha missão cá na terra”.
Osório César, 83 anos, paraibano de João Pessoa, nos recebe acamado ao lado de sua mulher, no pequeno e confortável apartamento onde vive no centro da cidade. Seus 10 mil livros e uns 300 quadros estão espalhados pelas salas e Osório vai apontando as telas preferidas, de Walter Lewy, Quirino, Mori (1ª fase). Konoshita, Castellani, Gino Bruno, Tabaona, Pennacchi (com afetuosa dedicatória), Nelson Nóbrega, Fang, Julio Guerra, Wega, Kaminagai, Marina Caram, Marysia, Raimo, Renée Lefèvre, uma escultura de Pola Resende. E muitas, muitas obras de psicopatas, em geral de um surrealismo fantástico e trágico. Dentista, médico, pesquisador, Osório foi o pioneiro em nosso país a se interessar pela arte dos psicopatas, muito antes das experiências (tão badaladas, hoje) de Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro.
- “Meu trabalho foi facilitado, pois entrei para o Juqueri em 1925... Curei muitos doentes mentais, pela arte... Fiz muitas exposições de seus trabalhos, aqui, no Rio, em Paris, sempre pioneiramente... Por que não, a cura pela arte?... Van Gogh não era um louco, e, hoje, não é considerado um gênio?... Acho que fiz umas 50 exposições desse tipo, e o Rebolo e toda geração de 40/50 devem se lembrar das mostras de psicopatas no Clubinho dos Artistas... Mas, a mais importante, foi a que levei para a Sociedade de Psicologia, de Paris, onde falei a mais de 200 médicos ali reunidos... Pena que com exceções, esse movimento não tivesse sido continuado até hoje.
Osório veio para São Paulo em 1912. Formou-se em odontologia, dando aulas de violino para sobreviver. Em 1918 matriculou-se ma Faculdade de Medicina, terminando seu curso médico em 1925, na Faculdade da Praia Vermelha. Depois de formado, viajou pela Europa, fazendo cursos de especialização na França, na Rússia, na Alemanha.
Em Paris trabalhou vários meses como assistente voluntário no Hospital Salpetrière, o mesmo onde Jung se especializou. Aqui conheceu vários discípulos de Jung, entre os quais o Prof. Pierron. Visitou os grandes centros hospitalares desses países e também da Turquia. Na Rússia, em Leningrado e Moscou, participou do 15º Congresso Internacional de Fisiologia, certame organizado por Pavlov. Correspondeu-se com Freud, mas vendeu as cartas do criador da Psicanálise recentemente, num aperto financeiro... Foi o segundo marido de Tarsila do Amaral, após o casamento desta com Oswald de Andrade, e não gosta de falar muito nessa ligação.
- “Tarsila era maravilhosa, como mulher e artista... Fui com ela à Rússia e Turquia, numa viagem fascinante de 3 meses... Ela fez alguns desenhos, vendeu um trabalho por 300 rublos, em exposição em Moscou, 2 eu publiquei em meu livro “Onde o operariado dirige”... Interessante que, ao voltarmos de viagem, eu fui preso, durante um mês, na Polícia Política do Rio, e ela, que tinha ligações mais altas, e era fazendeira, dói solta no dia seguinte... Ela recebeu na Europa, de Leger e outros, muitas influências, mas sua pintura social, logo após a fase da Antropofagia, quando fez operários e arrabaldes, é notável e de grande importância para a arte brasileira.”
Osório Cesar escreveu durante 30 anos, como colaborador, em vários jornais, fazendo crítica de arte ma “Folha da Tarde”, “A Gazeta” e “Diário da Noite”. Achou sempre Portinari um artista realista e nacionalista, pintou a fome, a miséria, os retirantes... Di Cavalcanti, a seu ver, era mais expressionista formal, um figurativo sensual e lírico... Hoje, acha, o pessoal de seu tempo evoluiu de um academicismo/figurativismo, para os ismos que “consagram ou enterram”... E cita, como artistas ainda preferidos, Volpi, Pennacchi, Mori, Rebolo e Walter Lewy. Na poesia, ninguém se igualou a Neruda.
- Publiquei mais de 20 livros sobre a expressão artística dos alienados, a arte primitiva dos dementes, simbolismos gráficos e sensuais entre psicopatas, a arte dos loucos e vanguardistas, e outros, de pesquisa científica e caráter social... O livro sobre a Rússia tem prefácio de Henry Barbusse, diretor do “Le Monde”, e o “Misticismo e loucura”, foi o prêmio maior da Academia Brasileira de Letras em 1948... E até hoje tenho a segunda edição dessa obra, pronta, completa, ilustrada, mas não aparece editor, quem sabe agora... Preso fiquei no célebre presídio da Polícia política paulista, o Maria Zélia e aquilo sim, é que era loucura... Mas ao final de longo processo, que durou 5 meses, o íntegro delegado que presidiu o inquérito, Fernando Luiz Vieira Ferreira, disse que o meu livro “Onde o operariado dirige”, honrava a cultura brasileira... E fui solto... Agora... detenções tive muitas e outras, mas não me arrependo de nada. E quer saber de uma coisa (?), sou fã de Luiz Carlos Prestes até hoje... A sociedade brasileira há de encontrar o seu caminho democrático de abertura e a nossa cultura viverá dias melhores.
FOLHA DE SÃO PAULO
12 de agosto de 1.979.
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