Aldo Cláudio Felipe Bonadei nasceu em São Paulo, em 1906.
Seu pai Cláudio, mecânico, italiano, montou numa oficina da Rua Santa Ifigênia, o primeiro automóvel no Brasil, importando um motor francês de 30 cavalos. Pintor e intelectual, Bonadei estudou aqui com Pedro Alexandrino, que foi seu mestre e amigo, com Amadeu Scavone. Na Itália recebeu orientação de Carone, de 1930 a 1932. De volta ao Brasil integrou o Grupo Santa Helena - com Volpi, Graciano, Rebolo, Penacchi, Zanini, Manuel Martins e Rizzotti - expondo em salões, galerias e bienais. Premiado várias vezes, tem tido uma carreira austera (Paulo Mendes de Almeida), com sua alma meditativa (Sérgio Milliet), pintando obstinada e intensamente paisagens e naturezas-mortas abstratizantes (Walter Zanini). Poeta e professor de pintura.
Não pinto “brasileiro”, não faço regionalismos nem folclore, não gosto da “pintura social”, nem o assunto, o tema de cada quadro meu, é tão importante e confesso que não tenho qualquer interesse por “ismos”, escolas ou influências próximas ou remotas... Mas me interessa, isso sim, fazer uma obras de arte de qualidade, uma, universal, criar uma pintura que todos entendam, vejam, sintam e ouçam, julguem-na sem preconceitos quanto à cor, prisma, tema, formas... Para ver uma obra de arte, é preciso ver, saber ver, e silenciar, e quem menos enxerga, são os mais comprometidos...Os simples e os puros vêm e sentem, melhor.
Aldo Bonadei atendeu pessoalmente ao toque da campainha, mora num apartamento duplo, cheio de quartos e salas, onde suas obras encaixam às paredes, até na cozinha, em meio a imagens de madeira, vasos japoneses, castiçais antigos, ex-votos mineiros, peças orientais, redes do Norte, xícaras e relógios, jarras, móveis coloniais, tapetes de sisal, telas de Ianelli, Penacchi, Nonê, Raimo e Rebolo, galos de vidro, uma grande garrafa (pela metade) de JB, marquesas de estilo e outros mil objetos.
Sabe, adoro coisas antigas, isto tudo recebo dos meus amigos, hoje em dia não se pode comprar mais nada, S. Paulo não tem mais antiquários.
Sua irmã Inês já aparece, ela subiu do apartamento de baixo, onde mora, vem ver o mano famoso, como faz diariamente há dezenas de anos. Ela trata carinhosamente “o Aldo”, desde o seu café da manhã. “Sempre foi assim, posei muito para ele, sempre fiz fé na sua pintura, e ele, embora muito genioso, sempre foi muito bom para nós.”. Esse nós é para a própria Inês e as outras duas irmãs, Júlia e Dina. É uma família típica e unida, como mandão figurino italiano.
Bonadei acordou pelas 7 horas, tomou um café simples, com banana e maçã. Há 3 anos não lê mais jornais, “odeio guerras, os horóscopos são mentirosos, ler jornal hoje me dá sono”, confessa. Não vê também noticiário de TV, nem escuta rádio, “as novidades os amigos me contam, acho que é a velhice, a gente começa a se desinteressar das coisas”...
Depois, anda meio adoentado, comendo pouco, gosta mesmo é de ir para Ubatuba, onde na praia da Maranduba, se delicia com a casa de sua amiga pintora Florita e vê e ouve o mar.
Mas já não estou gostando tanto, agora está dando lá muito borrachudo, e não tem banho quente - ele ri.
Está terminando uma pequena tela, iniciada há dias, uma visão cotidiana de seu bairro, de seu fundo de quintal. Quando desceu a rua - o velho Bonadei pinta ainda de cavalete - um senhor viu-o instalar-se e disse: O senhor precisa pagar licença, para pintar o nosso beco. Bonadei conta mil historietas curiosas e pitorescas, sempre acontecem coisas incríveis, quando sai à rua a pintar, ou na Maranduba. Ele é um conversador inteligente e observador sagaz, fala, “quem não se comunica se trumbica”, bonachão e alegre. Aos domingos, ele via a Hebe, na TV, agora dá uma espiada pelo Flávio Cavalcanti, mas acha-o apressado, fecha a estação. “Estou mesmo é apaixonado por essa Márcia de Windsor, essa rainha alegre e otimista de nossa televisão, ela também dá nota dez para tudo na vida, como eu. Se o mundo tivesse mil márcias de windsor seria feliz, não haveria disputas nem guerras”, diz filosofando, pulando dum assunto a outro. Volta-se a sua pequena tela, as pinceladas são certas, duras, pacientes. Fala com afeto de seus alunos, escritores, empresários, universitários, ele só ensina de graça - Camila Cerqueira Cesar, Lurdes Pedreira, Jorge Bussab, Alceu Novelli, Helu Motta. Tem também uma aluno de “filosofia da poesia”, Antonio Gonçalves, marido de Susi, filha de seu fraterno amigo Rebolo Gonzales.O Antonio é companheiro também em caminhadas pelo Bexiga, nos jantares regados a um bom chianti, na “Bambi”, na “Candeia”, no “Kobbis”, na “Kociatore” e outras cantinas da Bela Vista.
Sabe, ser professor é perigoso, não gosto de influenciar alunos, estou perdendo o embalo, sou intelectual demais para ensinar... Mas também essa história de influência é muito relativa. Na Cosme Velho o César Luiz me mostrou um “Morandi” que não é Morandi... Picasso e Braque, no início do cubismo, tiveram quadros com grandes parecenças, sem que se soubesse qual era dum ou de outro. Quanto a mim, confesso que não sou autodidata, as influências, sejam num artista, como num músico, são fatais. Aprendi muito com Pedro Alexandrino Scavone aqui e Carone na Itália e depois, aqui de novo, na fase com o Grupo Santa Helena de saudosa memória. Hoje acho que me fixei num estilo meio cubista, meio expressionista, toco às vezes o surrealismo, me disseram que tenho chegado até, em certas criações, ao concretismo.
Bonadei almoçou comines, um frango magro, sem cerveja, só um refrigerante. Está também com enjôos de uísques. À tarde, está recebendo amigos, alunos. Seua mais nova amiga, Léa, jovem psicóloga, convida-o para um passeio domingo, em Itapecerica, onde também o leva, outras ocasiões, Sofia Tassinari - e ele aceita. Outros amigos fiéis, o jornalista Vitor Daré, Rebolo e Penacchi, Gerda Brentani, o médico Antonio Moura de Albuquerque, amigo de 30 anos, dão notícias, telefonam. Bonadei confidencia que criou afama de bravo, mas não é, o que realmente não gosta, é de gente que chega e vai entrando ateliê adentro, mexendo em suas tralhas, transando e bancando o entendido. Depois do almoço, um pequeno descanso, depois pegou alguns livros para ler. Atualmente está acampado em Pawels e Gurdjieff, filósofos que acha geniais, e também, mais que todos, Ouspensky. Filosofia russa. A cor local - mas “universal”, segundo Bonadei - é dada por Guimarães Rosa.
Esse, não me canso de ler, tenho paixão, admiração sem limites, é antológico, nos temas e no estilo. O Guima tem qualidade, tem alma, tem música, tem espírito.
Fala da música popular brasileira, de que é fã incondicional, com seus achados, de letras,arranjos, trejeitos e musicalidade, elogiando Dolores Duran e Chico Buarque. “Não sou verde-amarelo, fanático, mas a nossa música é maravilhosa, abrigando o talento e o espírito da nossa gente”. Tem ouvido esses dias Vivaldi, Bach e Brahms, ontem foi ao cinema, assistiu ao filme de Polanski, o dos vampiros, - e gostou. Depois, aproveitou o resto da noite, para fazer umas poesias.
Que acha da arte brasileira atual?
A gente enxerga um pouco, o que está perto de nós. A gravura teve seu momento, parece que está meio parada. Volpi é uma admiração minha, como pintor, acho que trilha um caminho certo, corajoso, esse enxergou longe. Não tenho acompanhado as exposições, e, mesmo, muita gente está expondo pouco. Maria Leontina, por exemplo, por onde anda?
E os leilões ajudam os artistas?
Sim, em arte, quanto mais se mexer, melhor.
E o movimento das Bienais?
Também é positivo. O Brasil teve três momentos em arte, do ponto de vista histórico - a Semana de 22, que deu o empurrão inicial, o Grupo Santa Helena, que continuou sua obra renovadora, e por último, nos últimos anos, a Bienal, beneficiando os artistas e a nossa arte em geral.
O que acha da arte cinética, da arteônica?
Tudo válido, como experiências positivas e necessárias.
Quais seus projetos futuros?
Não tenho projetos, quero viver o meu dia-a-dia, quero apenas o meu trabalho de criar beleza na vida. Estou satisfeito com a vida que tenho, o que me dá maior prazer é não avaliar as coisas pelo dinheiro, mas, sim, pelo seu valor estético e de qualidade. O sentido das artes plásticas não é o valor comercial, nem o social, mas o seu valor estético, qualitativo, a sua beleza pela beleza. Procuro fazer assim uma arte consciente, onde a visão estética deve superar tudo, acima de todas as coisas. Considero-me abençoado pelo estudo que tive, pela intuição e sensibilidade que coloquei na minha arte, nunca imitei, nunca quis posar de cetim quando o certo era a chita...
Bonadei está falante, a cabeça grande se projeta, a camisa hindu, vistosa e grande, torna-o atarracado, seus cabelos a la poeta estão bem grisalhos. Uma amiga chega apressada, ouviu um crítico de fama - dos poucos que ainda restam no jornalismo atual - Bonadei foi julgado “como um mestre que ficará, sua obra tem notável unidade desde o início”. O artista ri, prepara um cafezinho na chaleira antiga, o seu apartamento de solitário está arrumado, por mãos de fada, tudo em ordem. Ele agora quer saber de Sisi, Lea ou Inês:
Mas quando é, mesmo, que começa a novela com a Márcia de Windsor? Essa quero assistir de ponta a ponta. Essa mulher me faz um bem.
Três poemas
“Vir feito anjo!
Tudo será novo
Não mais lágrimas
Mal tocarás o chão
O amor voltará todo
E será sempre
Como foi apenas pressentido
Não mais adeuses
Mesmo longe todos seremos um só
Feito um sonho bem no escuro
Vir de leve espiralando
Ver as árvores sobre a terra
Terra escura
Baixar devagar
Espiralando...
Dizer a grande nova...
Já sabida.”
***
“Não sou dourado e velho
Com outras cousas d’então
Não queiram comparar-me
Com isqueiros e outros.
Sou tímido
Não tino, não sou metal
Ou cristal, sou somente
A lembrança de caminhos
E ciprestes d’uma
Mocidade vagada
Vagabunda e muito ousada
Não me queiram mal
Sou só p’ra olhar
Outras prendas não tenho
Sou vagar d’olhos
Somente.
Sou poeta que parou
E quis malogradamente fixar
Um “canto” de caminho.”
***
“Azuis tem muitos
O que eu quero
É um só.
Talvez de lado
Esquerdo
De doido coração.
Pra lá esverdeado.
Depois, puxa vermelho
O meu azul,
Segredo,
Entre azuis guardado.
Ocre - azul
Amor - espera
Azul - pervanche
Azul - turquesa
Noite - noite
Amor - amor
Azul - azul
Oocre - adeus.”
Aldo Cláudio Felipe Bonadei, mais conhecido por Aldo Bonadei (São Paulo, 17 de junho de 1906 — São Paulo, 16 de janeiro de 1974) foi um pintor brasileiro, e destacado integrante do Grupo Santa Helena por sua formação mais erudita.
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