“A verdade dói. A arte é humana. O artista é a própria arte. A pintura é minha vida. Pinto o que sai do meu coração.”
José Antonio da Silva, 1972.
José Antonio da Silva está para a arte brasileira assim como Picasso, neste século, está para a arte contemporânea. Acima de seu tempo. O prof. Pietro Maria Bardi, então diretor do MASP, afirmou no Jornal da Tarde, em 1987, que “Silva é o maior artista vivo do país”. Isso eu afirmara antes, muito antes, há quase quatro décadas, quando conheci o pintor primitivista em São José do Rio Preto. Ele parecia um rapazinho do Interior à frente de suas telinhas de boizinhos e cenas rurais no espaço reservado aos artistas brasileiros na 1ª Bienal de São Paulo. Portinari vinha puxando um séqüito de gente junto ao poderoso Francisco Matarazzo Sobrinho, presidente da Fundação Bienal. O “Ciccillo” quis que o mestre de Brodósqui, então o mais famoso artista do país, visse a obra singular do artista interiorano recém-chegado à corte paulista. Portinari afastou Matarazzo e disse enfaticamente: “Não gosto de pintura primitiva”. Hoje, 40 anos depois, é preciso parar no tempo e no espaço e dizer sem medo: José Antonio da Silva alcançou a grandeza ainda em vida. Aos 83 anos, forte e pintando cada vez melhor, atingiu a plenitude e, sem dúvida, na pintura brasileira fica seguramente ao lado de um Portinari, de um Di Cavalcanti, de um Lasar Segall, de uma Tarsila do Amaral, de um Guignard, de um Volpi. Retrata exemplarmente o Brasil da roça, nosso folclore e a tipicidade da cultura popular. Acima e melhor que qualquer artista vivo do Brasil.
De formação autodidata – só freqüentou dois meses o primeiro ano primário – filho de modestos lavradores, desde o início na pintura, nunca parou, beirando a excepcionalidade no gênero primitivista embora incursione, às vezes, também com segurança pelo expressionismo e até pelo surrealismo, sempre mágico e feérico, num cromatismo vivo de cores que é uma festa para os olhos e o coração, - marca, sempre, do incomum artista telúrico de nossos dias.
Descoberto em 1946, em São José do Rio Preto, por Lourival Gomes Machado, João Cruz Costa e Paulo Mendes de Almeida num concurso oficial – onde tirou o 1º lugar como “pintor moderno”, mas foi desclassificado para o 4º lugar pela intransigência dos organizadores – o então porteiro de hotel logo despontou na Capital, com suas pinturas líricas e ingênuas. É lançado por Matarazzo Sobrinho, Yolanda Penteado, Carlos Alves Pinto e outros intelectuais e ganha notoriedade. O crítico Sérgio Milliet e o cronista Rubens Braga o elogiam. São Paulo se rende ao homem da roça, ao ex-domador de burro. Ao ex-pintor de cemitério, ao ex-colono das fazendas de café da Alta Araraquarense e se maravilhava com a linguagem plástica espontânea, o cromatismo vigoroso, e, sobretudo, com a pintura maravilhosamente brasileira de José Antonio da Silva. Desde a Semana de Arte Moderna de 22, desde os primórdios do Grupo Santa Helena e dos movimentos artísticos que se seguiram não se via em nossa arte um artista que resgatava, assim, o Brasil. A trajetória de Silva estava assim traçada, desde que se mantivesse fiel à sua origem, a si próprio – e isso o mestre riopretano conseguiu, escalando a glória palmo a palmo, em exposições vitoriosas no país e nas Bienais de São Paulo, de Veneza e de Havana. Um artista incomum, sabendo cada vez mais lidar com a temática alegre do sertão e a linguagem viva das cores, dentro de uma técnica muitas vezes brutal e gestual, mas sempre sensível e altamente eloqüente – como em seus quadros de linguagem mais expressiva – o dos boizinhos, dos casamentos na roça, das queimadas na floresta, das colheitas de algodão, das fugas de noiva, das festas e das mulheres amorosas, das boiadas e dos carneirinhos, das cestas de flores e, também, dos retratos de pessoas incluindo aqui excelentes auto-retratos.
Do início até hoje, esse Silva realista e intuitivo, rapsodo, lúdico e engraçado, de tão rara inspiração e espantosa produção foi capaz de impressionar críticos e intelectuais do porte de Carlos Drummond de Andrade, José Geraldo Nogueira Moutinho, Lélia Coelho Frotta, Rodha Abramo, Paulo Dantas, Dinorah do Valle e Antônio Cândido de Mello e Souza, entre outros.
E Silva seguiu carreira, vindo morar em São Paulo, por temporadas, num hotelzinho do centro. Trazia telas já prontas e pintava aqui também sob encomenda. Em São José do Rio Preto aumentava a prole na casa de Vila Maceno, e tornava-se funcionário municipal. Fundou um museu primitivista, - hoje transformado no Museu Primitivista “José Antonio da Silva”, glória da cidade e da Prefeitura Municipal.
À sua arte, que se tornara conhecida no país e no mundo, Silva acrescenta novas facetas de seu talento – as de repentista e violeiro, vibrante e extrovertido, poeta, escritor e escultor. Revela-se um exímio contador de estórias, e “causos”, com conversa viva e inteligente, fazendo roda onde quer que estivesse. Na literatura, basta ver (e ler) seus cinco livros publicados, dos autobiográficos “Romance de Minha Vida”, e “Sou Pintor Sou Poeta”, aos romances “Alice”, “Maria Clara” e “Fazenda da Boa Esperança”, lançados por renomadas editoras, relatos emotivos e pitorescos das andanças de Silva pelo Interior, casos amorosos, reflexões sobre a vida e a realidade social vivida e sofrida pelo autor. Qual Cornélio Pires, Mazzaropi, Rolando Boldrin, Tonico e Tinoco, Silva incursiona pela cultura caipira, a vida simples e gostosa do interior, contando com graça e aguda observação as situações de muita autenticidade que sabe criar e transmitir.
João Cândido Galvão, curador de Eventos Especiais da 19ª Bienal, onde José Antonio da Silva teve sala especial, ressaltou, em página antológica no Jornal da Tarde, “será literatura provocante de Silva, capaz de comover a todos, com a retratação singular das mazelas e riquezas do “hinterland” paulista”.
Já Theon Spanudis, crítico e psicanalista, viu na obra de Silva – artística e literária – “uma capacidade inata de misturar elementos primitivistas, surreais e expressionistas, numa dualidade entre Deus e o Diabo” – um Silva, assim, meio dionisíaco e meio diabólico, indo da ingenuidade mais pura à genialidade mais anárquica.
Silva é essencialmente, a meu ver, um amoroso – ama a vida, as pessoas, as situações, a sua obra, o seu país. Adotou uma conduta ética e gosta de viver e amar. Casou várias vezes e a mulher foi sempre parte integrante de seu cotidiano e de sua arte. “Quem não ama ou nunca amou, nasceu e não viveu. Todo artista tem de ter amor. Amar é viver” diz em sua série de máximas afixadas em seu apartamento do Cambuci, na Capital, onde mora há 15 anos.
Em seus romances, principalmente “Alice” e “Maria Clara”, deixa transparecer todo o seu afeto pela mulher do povo, pelas mulheres solitárias, abandonadas, sofridas, renegadas sociais. Retratadas nuas ou em cenas hilariantes e eróticas, têm elas sempre um crucifixo no pescoço, revelando seguramente a liberdade do artista frente a seus temas, sem autocensura.
É preciso acrescentar ser Silva uma personalidade abrangente e complexa, sagaz ao extremo, com uma sabedoria de vida capaz de fazer inveja ao velho sábio de Jung. A fantasia imaginosa de José Antonio da Silva faz o artista comparar-se a Picasso ou a Van Gogh, figurando, portanto entre os maiores pintores do século. No caso específico de Silva, pergunto, porém, em sua defesa: Qual o artista brasileiro que, em vida, teve (tem) um museu com seu nome? Que publicou, em livro e em disco, a história de sua vida? Que tem a seu respeito um livro luxuoso editado na Alemanha (livro organizado por Ladi Biezus, conhecido colecionador de São Paulo)? Que tem outro livro, no caso “Alice”, adaptado em peça de teatro, pelas mãos do famoso diretor teatral Antunes Filho? Que foi premiado nas três bienais de que participou – São Paulo, Havana e Veneza?
E não se diga que Silva não passou dissabores sem conta, em sua vida aventurosa e plena de lances ás vezes dramáticos. Nos anos 50 teve o amargor de não ser entendido em sua cidade, quando foi se tornando conhecido em São Paulo e outros centros artísticos. Teve de enfrentar incompreensões e prefeitos hostis, mas hoje é cidadão honorário de São José do Rio Preto e da cidade onde nasceu, Sales de Oliveira. Foi nos anos 60, cortado, por pura perseguição, da Bienal de São Paulo, nascendo daí sua mágoa profunda das bienais retratadas em vários quadros, onde simplesmente... enforca os críticos maldosos. Teve de enfrentar uma crítica interesseira e marchands concupiscentes, com os quais batalhou a vida inteira uma guerra terrível.
Certa vez, revoltado com uma proposta enganosa, rasgou cerca de 40 telas já pintadas, fato noticiado em manchete pelo “O Estado de S. Paulo”, em sua página cultural.
O próprio museu que ergueu em São José do Rio Preto, custou a emergir no emaranhado da burocracia oficial, e Silva se exasperava em visitas e cartas de próprio punho, zangado com a falta de ajuda e apoio. Hoje, o Museu Primitivista que leva seu nome ilustre está inserido no centro cultural de Rio Preto e abriga mais de cem telas, todas de alta qualidade, dispõe de vasta iconografia de Silva, que servir a futuramente ao estudo mais aprofundado de sua vida e de sua obra. Silva, também, nunca fez parte de panelas e igrejinhas dos meios artísticos, sendo fácil supor quão difícil e trabalhosa foi sua escalada no ambiente cultural da Paulicéia, ele que vinha desarmado do interior, mas carregando sua vocação inata para a pintura, o dom natural dos grandes artistas e uma escrupulosa conduta pessoal, que afinal fizeram vencer o matuto no mercado fantástico de São Paulo, Rio e outros centros de arte do mundo. Silva nunca foi artista bafejado pelos meios oficiais, não contou com benesses de quaisquer espécies, apenas, nestas décadas, com a solidariedade irrestrita de alguns (e poucos) amigos. E assim, esse herói da roça se tornou – ele, o 9º entre 18 irmãos, filho de seu Isaac e d. Brasilina, – um Silva vitorioso, humano, nacionalista, brasileiro, universal. O Silva amoroso, o Silva pintor, o Silva poeta, o Silva músico, o Silva escultor, o Silva repentista, o Silva pintor, o Silva artista, o Silva sábio, arquétipo se nosso povo.
Ele retrata o Brasil e o inconsciente coletivo popular, é bom repetir. A alma de nossas gentes escondidas nas grotas do sertão. O interiorano desconfiado, alegre e sofrido, anedótico e sedutor, inventivo e lírico, instigante e intuitivo, tem feito de suas obras nestes 46 anos de exemplar coerência e fidelidade a si próprio (tanto que a pintura do Silva é uma só, sempre, não tem “fases”), uma missão e um testemunho de luz e verdade.
Uma vez perguntei a José Antonio da Silva como definiria sua vida, em três palavras. Sua resposta é uma síntese-guia, um retrato por inteiro do artista, do homem e se sua saga admirável:
“Flor. Dor. Amor”.
Gandhi, em suas prédicas, plenas de verdades, dizia que uma arte verdadeira provém de uma alma verdadeira. Flor. Dor. Amor... Alma verdadeira, não só um “coração que dói”, você tem, caro José Antonio da Silva, Mestre!
Luiz Ernesto Kawall
(José Antonio da Silva – 5 décadas de arte brasileira) – 1992
Texto maravilhoso. Odecio Rossafa diretor do espaço BARTHO-NAIF nas margens do Rio São Bartolomeu em Brasília.
ResponderExcluirCaro Odecio. Grato pela referência sobre o artista José Antonio da Silva, grande primitivista brasileiro. Tive a oportunidade de conhecê-lo na casa de Luiz Ernesto, que sobre ele escreveu vários texto dos quais alguns publicamos nesse blog. Um abraço. Arnaldo.
ResponderExcluirBelo texto! A arte de José Antonio da Silva impressiona. Tem o gosto do interior paulista. Interesso-me pelo tema. Por acaso conhece outros artistas, pintores desta região e época?
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