Era uma vez um marinheiro... A história de Giuseppe Gianinni Pancetti poderia começar assim. Embora tenha nascido longe do mar, em Campinas, em 1904. Morreu, entretanto, junto dele – na Guanabara, em 1958. Por toda a vida, ele sempre percorreu o mar, embora também amasse as montanhas de Campos do Jordão. E na sua pintura aparecem por igual os montes e o litoral.
Suas muitas viagens pelo mundo começaram aos 10 anos de idade, quando, filho de imigrantes italianos, foi para a Itália. Lá fez seus primeiros estudos, e voltou – alistando-se, no Rio de Janeiro, na Marinha de Guerra, como grumete. Serviu a Marinha de Guerra mais de 25 anos e só se transferiu para a reserva em 1946, como primeiro tenente. S
Sua fama de hábil pintor sempre foi reconhecida na Marinha. Era um artista e um trabalhador manual, em pintura, acatado. Foi nomeado primeiro instrutor do quadro de pintores criado na Marinha. Em 1932 foi publicado na “Folha Ilustrada”, antigo jornal carioca hoje fechado, o seu primeiro desenho.
Em 1933 manteve os primeiros contatos com os meios artísticos cariocas. Trabalhou no Núcleo da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de janeiro, com os artistas Dacosta, Aldo Malagoli, João José Rescala e outros. Participou, nesse mesmo ano, pela primeira vez, do Salão Nacional de Belas Artes, no qual viria mais tarde conquistar menção honrosa, em 1924; medalha de bronze, em 1936; medalha de prata, em 1939; e, na Divisão Moderna do certame os prêmios de Viagem ao Estrangeiro, em 1941, e de Viagem ao País, em 1948. participou também da Bienal de Veneza e de outras mostras internacionais.
A crítica especializada o situa ao lado de Guignard, Volpi, Rebolo e Segall, na tradição dos nossos melhores paisagistas. O pintor Pancetti deixou junto aos quadros, ao longo dos 54 anos, cartas, escritos pessoais e outros depoimentos do homem Pancetti. Na carta ao amigo Conde é o pintor e o homem que se expõe abertamente, deixando-se ver por inteiro, como em suas paisagens. É Pancetti quem fala:
“Amigo Condé:
É a primeira carta do ano de 1950 que eu escrevo.. No relógio são duas horas e trinta minutos da madrugada deste meio século, e no meu apartamento uma desordem e tanto. Telas em desalinho pelas paredes e outras pelo chão, esparramadas. Uma cadeira tombada num canto sobre meu terno novo e livros abertos sobre a mesa e sobre a cama e que eu nunca acabo de ler. O soalho de meu quarto enorme está salpicado de pontas de cigarros, pincéis e manchas de tintas. Um tubo de amarelo esmagado e na sola de meu “Clark” esquerdo uma perfeita paisagem surrealista...
Todo esse aspecto sombrio me lembra o convés do “Maria-Rosa”, após uma tempestade em pleno Mediterrâneo. Deve ter sido o efeito do vinho, bom vinho português, ao autor dessa desordem. Um auto-retrato com flor vermelha na boca me espia terrivelmente lá dum canto e eu mesmo tenho medo dele...
Rompi o ano na modesta e pitoresca pensão onde moro, no bairro da Abissínia, com a família do hoteleiro, gente boa!
Comemos, bebemos e rimos a valer. Na sede do “Abissínia F.C.” velho casarão de madeira aqui ao lado, continua um baile animado e o som da orquestra chega aos meus ouvidos neste instante. Meu pensamento é todo daquele que veio, aflito, na tarde de ontem, avisar-me que partirá para São Paulo às 7,40 da manhã de hoje. Na casa de uma irmã onde reside souberam da sua ventura, daí a viagem precipitada. Disse-me que era um fim de ano triste e o princípio de outro mais triste ainda. Tirou seu cordão de ouro do pescoço e beijou demoradamente a medalhinha, que é um coração, dizendo: “é lembrança da mamãe, guarde-o. Não me esqueça e acredite em mim”.
Despediu-se, chorando, prometendo escrever-me logo e recomendando-me muito que não fosse ao seu embarque.
O som estridente de um samba novo que a orquestra envia agora não interrompe meu pensamento angustiante, nem as lágrimas que escorrem pelas faces. Que venha depressa então a aurora, o sol radiante da primeira manhã do ano, oh Deus!
À tarde, saudoso, direi ao mundo que minha amada partiu...
Um grande abraço de seu velho amigo. (Campos do Jordão, 1-1-1950).
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