Um catequista das artes
Arre! Até que enfim chegou o nosso primeiro catequista das artes plásticas. Artistas, amantes da arte mecenas já os temos tido. Uns bons, outros maus, outros péssimos, outros até prejudiciais, como em toda parte. Mas ainda não tínhamos visto gente que soubesse conquistar para a arte, naturalmente, sem nenhum esforço visível, quase só porque dá o seu recado na linguagem que todos entendem e de um jeito que todo mundo gosta, sem aquele empertigado ar apostólico dos que se sentem ungidos para cumprir missão divina.
Luiz Ernesto é o primeiro que faz proselitismo verdadeiro, em favor da arte. Lança a sua rede para todos os lados, indistintamente, e recolhe-a sempre carregada. Os que vêm nela estão contentes: ou reforçam a sua crença, ou se sentem preparados para o batismo da arte. Até agora, quem falava de arte, pelos jornais, ou não entendia nada do riscado, limitando-se a descartar-se de uma tarefa profissional, para ganhar o pão nosso de cada dia, ou, quando era entendido, timbrava em postar-se “lá no assento etéreo”, para dirigir-se exclusivamente aos iniciados, aos já batizados e crismados na sua religião, que tudo faziam para tornar esotérica. Os primeiros ou amontoavam sandices irritantes, ou armavam bonitas frases, pontilhadas de termos sonoros e peregrinos, mas que não formavam nenhum sentido. Os entendidos, se cultos, inteligentes e com sensibilidade bastante, sabiam interpretar e comentar o artista e a sua obra, situando-o no t empo e nas correntes estéticas, com argúcia suficiente para descobrir belezas ocultas ou falhas disfarçadas e para denunciar os charlatões. Mas falavam só para o restrito auditório do clube dos já apreciadores matriculados. Não ampliavam o círculo dos associados e creio que essa ideia nem lhes passava pela cabeça. Isto quando não sedavam ao jogo inglório de escrever cartas mais enigmáticas que as das revistas especializadas, porque absolutamente indecifráveis.
Luiz Ernesto inaugurou um gênero diferente na página de arte dos jornais. Nem a crítica erudita, repleta de conceitos técnicos, minuciosa na exegese da obra examinada, cheia de alusões e reminiscências inteiramente compreensível só pelos oficias do mesmo ofício, nem a mera reportagem incolor, terra a terra, feira de lugares comuns, que nada diz de aproveitável nem de novo, que não sobe acima da mediocridade morna das outras, igualzinha àquelas sobre as ocorrências policiais da véspera ou sobre a última partida de futebol, a denuncias que o autor não pesca nada do assunto tratado.
Temos aqui reunidos, os trabalhos de quem lançou, na imprensa diária, a crônica sobre arte, leve sem ser superficial, feita com a sensibilidade de alguém que sabe captar e transmitir o prazer estético recebido, interessante, movimentada, banhada num tocante calor humano, informando e instruindo sem pedantismo, educando o gosto sem nenhum tom professoral, como quem não quer nada, senão bater papo despreocupadamente, em linguagem simples, íntima, ao ritmo de uma cadeira de balanço, sobre coisas que aprendeu a analisar, porque fazem aquelas coisas. Nasceu para este trabalho de catequese. Escreve para todos e todos o entendem. As nossas artes visuais não tiveram melhor divulgador e arregimentador de adeptos. Alicia gene de todo tipo e de todo grau de instrução. Pode não ser esta a sua intenção. Acho mesmo que não é. Mas é isso que consegue com a sua atividade jornalística. Este livro vai prova-lo.
O autor deste livro gosta de arte, coleciona obras de arte com, o pouquinho que sobra do dinheiro suado, frequenta os artistas, adora um bom papo sobre arte, vive pensando em fazer coisas pela arte. Como me lembro de seu entusiasmo, dos bilhetinhos animadores, quase sempre com preciosas sugestões, que me mandava, quando passei a curar as minhas extenuantes canseiras de Secretário da Fazenda, utilizando os raros momentos de folga para dar apoio oficial às artes e aos artistas, para iniciar ou impulsionar os muitos diversificados e marcantes empreendimentos artísticos, que assinalaram o governo Abreu Sodré. Este, em quatro anos, sob a batuta estimulante do Governador, outro incorrigível amante da arte, fez mais nela cultura, em São Paulo, do que dez ou quinze anteriores, reunidos.
Há cerca de um ano, Luiz Ernesto resolveu aumentar o número dos participantes da conversa sobre arte. Quantos? Ele não sabe. Quanto mais, melhor. Foi cavaquear sobre arte, pelo jornal. Era um meio de trazer mais gente para a roda. Gente desconhecida. E era também um modo de servir á arte em campo mais vasto. Servir à arte e aos artistas, arrebatando novos amigos para a sua cruzada, com o ânimo alegre, bem humorado, sentimentalão, mas pertinaz e o realizador de sempre. Ele sabia que “a única forma de gosto, com ânimo universal, é o mau gosto”, como, há pouco, dizia Étienne Gilson num luminoso e espicaçante livrinho sobre “La Societé de Masse et as Culture”, onde demonstra o contrassenso da reprodução em série, de objetos de arte cuja essência é exatamente serem únicos. Partiu para a catequese pelo bom gosto, utilizando armas novas, ou, melhor, velhas armes que haviam caído no esquecimento. Reviveu o método dos padres catequistas do início da nossa colonização, Anchieta à frente. Nada das especulações teológico-filosóficas, vazadas no palavreado pomposo dos sisudos padres conciliadores, recém-saídos das reuniões de Trento. Nada de latim, Catecismo trocado em miúdo, traduzido na “língua geral”, ensinado no idioma dos curumins e servido á moda da casa.: com muita representação cênica, muita procissão, muita cantoria ao som dos atabaques, muito enfeite depenas e de peles, muito apelo às comparações com as coisas de todo dia. A pregação dos jesuítas deu certo. A de Luiz Ernesto também pegou. É para rojões, dançando em regozijo, ao redor de fogueira, em festança bem nossa, sorvendo bastante quentão, para ferver o entusiasmo. E ouvindo bastante cantiga violeira, para sentir gostoso.
Como lá diziam os Goncourt, “apprendre á voir est le plus long apprentissage de tous les arts”. Este livro – que terá e precisa ter continuação, com as crônicas que não couberam nele e com as outras ainda a serem escritas – vai fazer muito por que o homem comum, aquele com quem cruzamos na rua, a cada passo, aprenda a ver a tela dos nossos pintores, as gravuras dos nossos Goeldis, as nossas tapeçarias artísticas, as nossas aquarelas, guaches e águas-fortes, os desenhos dos nossos Portinaris, a estatuária dos nossos escultores, aquelas coisas estranhas e cativantes, que os artistas de hoje fazem e que a gente não sabe direito como e onde classificar; amanhã, também os belos edifícios dos nossos bons arquitetos, que os temos de primeira água, e as obras ditas das artes menores, que só são “menores” porque os gregos não inventaram musas para elas.
Estas crônicas estão construindo, pedra a pedra, um preciosos documentário, onde virão estabelecer-se os futuros historiadores da nossa arte de agora. Trabalho parecido com o que fez, pacientemente, Teodoro Braga, o meu manso, camarada, humaníssimo e culto professor de desenho. São como aqueles operários que constroem a casa inteirinha, em nome do engenheiro que assina a planta, mas que não aparece nem para ver que tal andam as coisas. Como Teodoro Braga valeu para o tão útil “Dicionário das Artes Plásticas no Brasil”, há pouco publicado por Roberto Pontual! Assim também valerá este “Artes-Reportagem” a quem for fazer, amanhã, um dicionário semelhante. Com uma vantagem sobrea contribuição do Braguinha, como os seus alunos o chamavam carinhosamente: os depoimentos dos artistas. Só quem já estudou alguma dessas extravagantes personalidades ou já teve bom contato com os resultados de tais estudos sabe quanto essas confidências são valiosas, em especial neste nosso Brasil, onde raramente aparece um Di Cavalcanti para narrar as suas memórias e contar as suas experiências artísticas. Mesmo quando eles mentem, quando escondem a verdade ou não a dizem por inteiro, quando querem fazer-se passar de executores de profundas elucubrações mentais, em vez de realizadores instintivos, mesmo assim os testemunhos dos artistas são altamente reveladores sobre eles, sobre a sua obra e sobre a criação artística. É conhecido o caso de Edgar Allan Poe, sobre a gênese da sua extraordinária poesia “O Corvo”, que o nosso Machado de Assis traduziu. Ele inventou toda uma estória inverossímil, totalmente inaceitável, sobre uma suposta origem ultra racional e lógica do poema. Ainda assim, as suas palavras ajudam sobremaneira a interpretação dos versos e o conhecimento do processo da sua criação.
Os depoimentos dos artistas não servem apenas para revela-los, para trazer á luz as suas tendências, os seus pendores, assuas preferências, as suas antipatias, as suas idiossincrasias, as suas filiações estéticas, as suas inevitáveis incoerências, as escolas em que se inscrevem, ou que detestam, os seus maneirismos, as suas concessões à moda e o heroísmo necessário para resistir à corrente. Servem também aos filósofos, para a contribuição das doutrinas estéticas. Confessava, outro dia, um deles – Étiene Souriau – dos maiores da atualidade, ao fazer o balanço os últimos vinte anos de estética, na “Revue d’Esthétique”, que é muito difícil atingir a natureza profunda do fenômeno estético “sans quelque experience personnelle de la création, sans quelque connaissence de l’art par l’intérieur”. Luiz Ernesto está fornecendo material aos nossos estudiosos de estética “sob specie philosophiae”. Eles existem? Existirão?
Existam ou não, quer eles, se existirem ou vierem a existir, quer os historiadores do atual período artístico do Brasil, já não poderão dispensar os subsídios aqui acumulados a mancheias, pelo Luiz Ernesto. Todos os últimos 50 anos das nossas artes visuais desfilam pelas páginas deste livro. Ou entram diretamente, pela presença dos entrevistados, ou pela evocação. Desde os precursores – Segall, Anita Malfatti – e alguns corifeus da Semana de 1922 – Brecheret, Di Cavalcanti – até os abstratos, com o grande Flexor na primeira linha, os sucessores deles, os taxistas, os concretistas, os primitivos – esse extraordinário José Antonio da Silva, um caso raro – os novos figurativistas, os contemporâneos em geral, passando pelos participantes da Sociedade Pró-Arte Moderna mais conhecida como SPAM, do Clube dos Artistas Modernos, dos Salões de Maio, infelizmente só três, do Grupo do Sta. Helena, que Mário de Andrade veio a batizar de “Família Artística Paulista”, das exposições do Sindicato dos Artistas Plásticos, dos “29”, do Museu de Arte Moderna, das Bienais de São Paulo, todos movimentos ou entidades nem sempre de duração muito
longa, mas que fundas marcas deixaram na evolução das nossas artes plásticas. Ninguém poderá fazer o levantamento das nossas artes plásticas, a partir da Semana de 22, sem ir ao que escreveram Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Osório Cesar, Luís Martins, este, para empobrecimento nosso, aposentado prematuramente nesta atividade, o inquieto Geraldo Ferraz tão bom amigo quão temível brigador, se o provocam nas suas convicções, dono de um farto enorme para descobrir o artista de verdade, a obra de arte genuína, sabendo definir, como ninguém, o que as coloca fora de série, Lourival Gomes Machado. E outros, vários outros. Paulo Mendes de Almeida, por exemplo, incansável conhecedor e servidor das artes, cuja evolução acompanha minuto a minuto, há muitos anos, com uma extraordinária capacidade de compreensão, de jeito só dele de falar sobre elas com extrema sensibilidade, num estilo claro, fluente, que se lê com o mesmo encanto com que ele discorre sobre o assunto. A seu modo. Luiz Ernesto será tão indispensável quanto eles, no futuro.
Luís Arrobas Martins
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