*Quando se diz, em jornais de todo o mundo, que “Guernica” se fixará na Espanha, só tendo permanecido na França - onde Picasso a pintou - e no Museu de Arte Moderna de Nova York, esquece-se que “Guernica” esteve também no Brasil, na 2ª Bienal de São Paulo, permanecendo aqui boa parte dos festejos do 4º Centenário. Quem conseguiu trazer a famosa obra picassiana para os brasileiros verem, num feito cultural do mais alto alcance internacional, foi o saudoso (e esquecido) Ciccillo Matarazzo, Mecenas das Artes. Nesse sentido é bom o depoimento de Cícero Dias - fraternal amigo de Picasso e intermediário da transação - dado ao colega Luiz Ernesto Kawall, nesta “Folha”, Artes Visuais, 8/1973. Ali se conta toda a história.
Tavares de Miranda, FSP, 22.10.1981.
Luiz Ernesto Kawall escreve:
“A obra genial de Picasso voltou à Espanha, vinda de Nova York, onde ficou tantos anos. Os jornais daqui e a imprensa internacional badalaram enormemente o regresso que só honra a Espanha, agora no caminho da democratização. Contudo, esqueceram-se de um fato notável da vida da “Guernica” e da arte em nosso país.
“Guernica” - lembra Luiz Ernesto - esteve no Brasil, em São Paulo, na Segunda Bienal, a do 4º Centenário. Quem a trouxe para cá foi “Ciccillo” Matarazzo e dona Iolanda Penteado, sendo “fada voadora” o artista brasileiro Cícero Dias. Coube a ele, inclusive, conseguir a necessária autorização do próprio Picasso, no retiro do artista, no sul da França. Tudo isso foi contado em Artes Visuais de 31 de agosto de 1975.
Realmente, naquele domingo, “Artes Visuais” publicou um depoimento de Cícero Dias dado a Luiz Ernesto, que historia as desmarches para a exposição da “Guernica” em São Paulo. FSP, 25.10.81.
Este o depoimento de Cícero Dias, no remate de Luiz Ernesto Kawall:
”Fui e voltei para Paris várias vezes. Mas, definitivamente, só nas vésperas da última guerra, lá por 37, 38. Aí, nessa época, Picasso executou “Guernica” impressionado por ter sido essa cidade espanhola bombardeada pelos nazistas. “Guernica”, tela a óleo de grande dimensão, é, na obra de Picasso, rara, pela sua expressão política, pela sua vigorosa mensagem. Significa a revolta do homem ante o regime totalitário e opressor”.
“Essa obra impressionante e contundente pertencia ao artista, que a depositou no Museu de Arte Moderna de Nova York, onde permanece, mas hoje, com a morte de Picasso, está arrolada em seu espólio, e sob guarda judicial. A obra, em si, Picasso a ofereceu à República espanhola livre... “Guernica” ficou sempre depositada no MAM de Nova York, sob maior vigilância de seu diretor, Alfred Baar”. “Quando foi da Bienal de 1954, do Centenário de S. Paulo, o “Ciccillo” Matarazzo, um pouco antes, tinha passado por Paris, e, como sempre, cheio de idéias, sendo uma delas, exposta em conversas, a de levar uma obra de projeção internacional para a Bienal de S. Paulo. Surgiu então a ideia de se apresentar “Guernica”, nessa ocasião, aos brasileiros. Houve várias tentativas do “Ciccillo” junto ao Jardot - escritor francês, muito amigo do Picasso - mas, este, esquivou-se, diante da impossibilidade de por em prática empreendimento de tal vulto. Jardot aconselhou procurarmos Keinweiller, principal marchand de Picasso, que, no mercado mundial, não só cuidava das maiores vendas de obras de Picasso, como de todos os principais interesses do artista”. “Ficamos diante de Jardot e Keinweiller, e ambos nada resolviam, recuavam.
O “Ciccillo”, antes de regressar ao Brasil, incumbiu-me de falar pessoalmente com Picasso sobre a possível vinda de “Guernica” ao Brasil. Achava que seria difícil, temerosa, mesmo, minha missão, pois sabia que Picasso, muito supersticioso, não desejava que “Guernica”, antes de ir - algum dia - para a Espanha livre, saísse de Nova York. Procurei novamente Jardot e Keinweiller e lês novamente me disseram que não poderiam fazer nada, que o que fizesse fosse de minha inteira responsabilidade.
“Decidi então ir a Vallauris, na Cote D’Azur, onde estava Picasso, e viajei logo, creio que com Raymonde, minha mulher. Fui procurar Picasso no seu atelier de cerâmica tão famoso e imediatamente dei-lhe ciência de minha missão. Senti que Picasso relutava com a ideia, alegando que “Guernica” nunca tinha saído do Museu de Arte Moderna de Nova York, mesmo diante das maiores retrospectivas deitas de sua obra, em Londres e Paris.
Não via ele - dizia - como poderia ter a desculpa de ceder a obra para sua vinda ao Brasil, alegando que tinha recusado o pedido de Henri Laugier, seu velho amigo, organizador da retrospectiva de Londres, que fizera pedido igual. Nessa retrospectiva, realizada logo após a guerra, o sucesso da obra picassiana foi tal, que havia permanentemente filas nas ruas de Londres, para ver as obras de Picasso. “Mas, acho que o velho sangue pernambucano e brasileiro, bateu mais forte. Apelei novamente, mostrando que “Guernica”, pelo seu sentido universal, era obra que deveria percorrer o mundo, não só o Brasil... Era o grito do homem pela liberdade, era a marca da arte da cultura ante a violência e a agressão... Picasso, afinal, concordou. Nisso, convidou-me para almoçar com ele em Vallauris, mas eu, temendo que o mestre, durante o almoço - que certamente seria precedido mudasse de ideia, não aceitei, alegando ter compromisso num restaurante da cidadezinha... Realmente, saí, almocei e voltei ao ateliê de Picasso, lá pelas 4 da tarde. Picasso não recuara. Já mandara aprontar um documento para Baar, autorizando-o a entregar “Guernica” para ser exibida na Bienal de São Paulo.
Picasso, creio, aceitara meus argumento, principalmente o de que sua obra magistral deveria ser exposta em todo o mundo. Realmente, depois de vir ao Brasil, creio, antes de voltar a Nova York, “Guernica” foi exibida em Milão e Paris. “Acho que Picasso acedeu também, como homenagem aos artistas brasileiros, que enviaram, ao término da guerra, um documento de apoio, texto esse, se não me engano, entregue com participação de Clovis Graciano, quando o artista paulista gozava o Prêmio de Viagem ao Exterior do SNBA. Nessa ocasião, Picasso encarregou-me de dar resposta à saudação dos colegas brasileiros, e essa mensagem foi publicada, por volta de 1945, no Rio, por Murilo Miranda, na extinta revista “Acadêmica”. Mas, aqui, quero reportar à origem da minha amizade com Picasso, que sempre me proporcionou tanta elevação e gestos de confiança, como esse... Tudo começou na época que Picasso executava “Guernica”, como falei no início.
O artista espanhol tinha ateliê em Paris na Rue des Grands Augustin. Paris vivia momento do após-guerra da Espanha e muitos exilados espanhóis, entre eles escritores e pintores, frequentavam o ateliê de Picasso Eu ia de permeio e acabei conhecendo a maior figura da arte contemporânea. Porem, minha amizade com ele, foi mais uma questão de afinidades artísticas e culturais. Frequentava seu ateliê e era apresentado aos seus amigos intelectuais, entre os quais, Eluard, o grande poeta, cuja amizade também privei. Eluard era companheiro de Picasso na boemia também. Entre os artistas, iam ao ateliê, mas não eram assim íntimos de Picasso, entre outros, que me lembre, Braque, Miró e Matisse.
“Picasso comigo falava espanhol, jantávamos e almoçávamos juntos, ele era afável, alegre, inteligente e culto. Essa camaradagem continuou sempre até as vésperas de seu falecimento. Ele foi inclusive padrinho de casamento de minha filha Silvia, em 1973, mas infelizmente, não pode ir à igreja, pois, nesse dia, muito cansado e adoentado, não pode ir a Paris. E é fato muito conhecido, nem preciso repetir aqui, o fato de que durante 12 anos, Picasso teve um telefone, registrado em meu nome, na lista de telefones da capital francesa. Mas, isso não vem ao caso. “Recordo-me do meu último encontro com Picasso. Foi em Mougins, em sua casa que se chamava Notre-Caame-de Vie. Com Raymonde e Silvinha, fui tomar um vinho em sua casa, e ele apareceu na sala imediatamente, assim que anunciada a minha presença. Vinha com o diretor do MAM de Nova York - não era o Baar, era um outro - de Jacqueline, sua mulher, sua editora espanhola, o secretário Miguel, o fotógrafo Quinn e de alguns familiares seus de Barcelona.
Apresentou-me ao seu grupo, dizendo: - “Este, Dias, não é só meu amigo, é uma pessoa de minha família, também”. Isso foi uma emoção, dada a maneira como Picasso me tratou e abraçou. Todos se emocionaram na sala. Tomamos vinho e rememoramos coisas passadas, como, por exemplo, estórias cotidianas, nossas andanças em Paris e outros assuntos gerais e amenos. Ele disse de alguma coisa que pude dar a ele, em ocasiões diversas, e eu falei também da apoteose que foi a presença de “Guernica” no Brasil. Recordei ter levado a Picasso, depois da exposição da obra na Bienal de S. Paulo, um impresso de Geraldo Ferraz sobre “Guernica”, que o mestre enviou para compor a bibliografia guerniquiana do MAM de Nova York.
Despedimo-nos afinal e ele me levou até a porta, com um carinhoso “Hasta luego, Dias”, que conservo até hoje nas minhas lembranças. “Não, não sei se Picasso exerceu influência em minha obra. É possível que a inquietação do homem e do artista tenha influído, de alguma forma, sobre minha pintura, sobretudo pela bagagem imensa que Picasso tinha de conhecimento da arte. Nada da arte do nosso tempo foi estranha ao gênio de Picasso. Picasso percorreu e suplantou todas as tendências da arte contemporânea, inimigo que sempre foi da estagnação. Os críticos dirão, porém, no futuro, algum dia, se alguns desses elementos picassianos se incorporaram inconscientemente às minhas telas .
“Essa obra impressionante e contundente pertencia ao artista, que a depositou no Museu de Arte Moderna de Nova York, onde permanece, mas hoje, com a morte de Picasso, está arrolada em seu espólio, e sob guarda judicial. A obra, em si, Picasso a ofereceu à República espanhola livre... “Guernica” ficou sempre depositada no MAM de Nova York, sob maior vigilância de seu diretor, Alfred Baar”. “Quando foi da Bienal de 1954, do Centenário de S. Paulo, o “Ciccillo” Matarazzo, um pouco antes, tinha passado por Paris, e, como sempre, cheio de idéias, sendo uma delas, exposta em conversas, a de levar uma obra de projeção internacional para a Bienal de S. Paulo. Surgiu então a ideia de se apresentar “Guernica”, nessa ocasião, aos brasileiros. Houve várias tentativas do “Ciccillo” junto ao Jardot - escritor francês, muito amigo do Picasso - mas, este, esquivou-se, diante da impossibilidade de por em prática empreendimento de tal vulto. Jardot aconselhou procurarmos Keinweiller, principal marchand de Picasso, que, no mercado mundial, não só cuidava das maiores vendas de obras de Picasso, como de todos os principais interesses do artista”. “Ficamos diante de Jardot e Keinweiller, e ambos nada resolviam, recuavam.
Picasso junto à Guernica |
Não via ele - dizia - como poderia ter a desculpa de ceder a obra para sua vinda ao Brasil, alegando que tinha recusado o pedido de Henri Laugier, seu velho amigo, organizador da retrospectiva de Londres, que fizera pedido igual. Nessa retrospectiva, realizada logo após a guerra, o sucesso da obra picassiana foi tal, que havia permanentemente filas nas ruas de Londres, para ver as obras de Picasso. “Mas, acho que o velho sangue pernambucano e brasileiro, bateu mais forte. Apelei novamente, mostrando que “Guernica”, pelo seu sentido universal, era obra que deveria percorrer o mundo, não só o Brasil... Era o grito do homem pela liberdade, era a marca da arte da cultura ante a violência e a agressão... Picasso, afinal, concordou. Nisso, convidou-me para almoçar com ele em Vallauris, mas eu, temendo que o mestre, durante o almoço - que certamente seria precedido mudasse de ideia, não aceitei, alegando ter compromisso num restaurante da cidadezinha... Realmente, saí, almocei e voltei ao ateliê de Picasso, lá pelas 4 da tarde. Picasso não recuara. Já mandara aprontar um documento para Baar, autorizando-o a entregar “Guernica” para ser exibida na Bienal de São Paulo.
Picasso, creio, aceitara meus argumento, principalmente o de que sua obra magistral deveria ser exposta em todo o mundo. Realmente, depois de vir ao Brasil, creio, antes de voltar a Nova York, “Guernica” foi exibida em Milão e Paris. “Acho que Picasso acedeu também, como homenagem aos artistas brasileiros, que enviaram, ao término da guerra, um documento de apoio, texto esse, se não me engano, entregue com participação de Clovis Graciano, quando o artista paulista gozava o Prêmio de Viagem ao Exterior do SNBA. Nessa ocasião, Picasso encarregou-me de dar resposta à saudação dos colegas brasileiros, e essa mensagem foi publicada, por volta de 1945, no Rio, por Murilo Miranda, na extinta revista “Acadêmica”. Mas, aqui, quero reportar à origem da minha amizade com Picasso, que sempre me proporcionou tanta elevação e gestos de confiança, como esse... Tudo começou na época que Picasso executava “Guernica”, como falei no início.
O artista espanhol tinha ateliê em Paris na Rue des Grands Augustin. Paris vivia momento do após-guerra da Espanha e muitos exilados espanhóis, entre eles escritores e pintores, frequentavam o ateliê de Picasso Eu ia de permeio e acabei conhecendo a maior figura da arte contemporânea. Porem, minha amizade com ele, foi mais uma questão de afinidades artísticas e culturais. Frequentava seu ateliê e era apresentado aos seus amigos intelectuais, entre os quais, Eluard, o grande poeta, cuja amizade também privei. Eluard era companheiro de Picasso na boemia também. Entre os artistas, iam ao ateliê, mas não eram assim íntimos de Picasso, entre outros, que me lembre, Braque, Miró e Matisse.
“Picasso comigo falava espanhol, jantávamos e almoçávamos juntos, ele era afável, alegre, inteligente e culto. Essa camaradagem continuou sempre até as vésperas de seu falecimento. Ele foi inclusive padrinho de casamento de minha filha Silvia, em 1973, mas infelizmente, não pode ir à igreja, pois, nesse dia, muito cansado e adoentado, não pode ir a Paris. E é fato muito conhecido, nem preciso repetir aqui, o fato de que durante 12 anos, Picasso teve um telefone, registrado em meu nome, na lista de telefones da capital francesa. Mas, isso não vem ao caso. “Recordo-me do meu último encontro com Picasso. Foi em Mougins, em sua casa que se chamava Notre-Caame-de Vie. Com Raymonde e Silvinha, fui tomar um vinho em sua casa, e ele apareceu na sala imediatamente, assim que anunciada a minha presença. Vinha com o diretor do MAM de Nova York - não era o Baar, era um outro - de Jacqueline, sua mulher, sua editora espanhola, o secretário Miguel, o fotógrafo Quinn e de alguns familiares seus de Barcelona.
Apresentou-me ao seu grupo, dizendo: - “Este, Dias, não é só meu amigo, é uma pessoa de minha família, também”. Isso foi uma emoção, dada a maneira como Picasso me tratou e abraçou. Todos se emocionaram na sala. Tomamos vinho e rememoramos coisas passadas, como, por exemplo, estórias cotidianas, nossas andanças em Paris e outros assuntos gerais e amenos. Ele disse de alguma coisa que pude dar a ele, em ocasiões diversas, e eu falei também da apoteose que foi a presença de “Guernica” no Brasil. Recordei ter levado a Picasso, depois da exposição da obra na Bienal de S. Paulo, um impresso de Geraldo Ferraz sobre “Guernica”, que o mestre enviou para compor a bibliografia guerniquiana do MAM de Nova York.
Despedimo-nos afinal e ele me levou até a porta, com um carinhoso “Hasta luego, Dias”, que conservo até hoje nas minhas lembranças. “Não, não sei se Picasso exerceu influência em minha obra. É possível que a inquietação do homem e do artista tenha influído, de alguma forma, sobre minha pintura, sobretudo pela bagagem imensa que Picasso tinha de conhecimento da arte. Nada da arte do nosso tempo foi estranha ao gênio de Picasso. Picasso percorreu e suplantou todas as tendências da arte contemporânea, inimigo que sempre foi da estagnação. Os críticos dirão, porém, no futuro, algum dia, se alguns desses elementos picassianos se incorporaram inconscientemente às minhas telas .
Texto: Luiz Ernesto Machado Kawall - Folha de São Paulo/Artes Visuais
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