quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

CARYBÉ

Caribé obá, cigano e baiano 

– Quanto ao presidente do Banco... diga a ele que não é possível eu vender os originais, quando eu bater a caçoleta que ele compre da Nancy ou dos meninos... Se ele quiser fazer folhinhas durante quatro anos, poderemos publicar o livro mais porreta do Brasil... Responda logo, receba um AU de peito, de rabo de arraia e uma meia-lua de compasso, seu velho amigo... a) Carybé. 

Hector Júlio Páride Bernabó está em S. Paulo. Este é um trecho de carta sua a uma migo paulista. Ele usa expressões populares a toda hora. Nasceu em Lanus, Província de Buenos Aires, em 1911. É cidadão mais brasileiro, baiano, “por decreto”, desde 1957. Teve infância passada em Roma, Gênova e o bairro de Bonsucesso, no Rio de janeiro, onde fez muitos amigos. Eles organizaram um conjunto que acompanhou Carmem Miranda até Buenos Aires – Caribé era pandeirista oficial da cantora. 

– Por que o nome Carybé? 

Ele aparenta menos idade do que tem, sessentão. Jovial e alegre, cabelos grisalhos, meio calvo, roupa esporte, é um belo papo. 

O ovo da ema (óleo sobre tela - 1976)
– Quando eu tinha dez anos era escoteiro no Ri e tinham todos nomes de peixe. Escolhi “Carybé”, piranha. E fiquei Carybé para sempre, nem atendo quando me chamam de Hector. 

Mas ele tem ainda outro nome, nem Hector nem Carybé, e que usa com orgulho: Obá Otum Onã Schocum, é um dos 12 ministros de Xangô, de um dos candomblés mais famosos da Bahia. Agora, expõe 27 monumentais painéis de madeira no Museu de Arte Moderna se S. Paulo focalizando esse tema único, os orixás dos candomblés. Por quê? 

– O painel é muito importante para mim. Gosto muito dele. Sinto que os candomblés, com todos seus rituais e tradições, estão acabando. Vão ficar do mesmo jeito que um que vi há dias no Ri, com uma sessão de trombones. Pode-se imaginar isso? Era um sambinha religioso, isso sim bacana, mas sem nada a ter a ver com o candomblé autêntico, com seu significado sociológico, sua tradição pura afro-brasileira. Na Bahia ainda se vê candomblé bom, ainda se come o caruru, que é a comida de Xangô, e o preferido de Iansã, nas ruas. Mas até isso vai acabar, o pessoal velho está morrendo e a tradição se acabando. Por isso fiz o mural. 

Cangaceiros

O mural é realmente monumental, e a seu lado, Diná Coelho, alma boa do MAM, desaparece. Tem corrente, armas e símbolos pendurados, de cada orixá. Carybé estudou cada santo, percorreu terreiros, conversou com obás e mães-de-santo, para torna-lo autêntico. Levou muitos deles, os mais desconfiados, ao seu ateliê em Brotas, para eu vissem o trabalho, não tivessem medo de informar sobre seus orixás bárbaros. 

– Seu dia é calmo? 
– Calmo é S. Paulo... Acordo pelas seis e meia, tomo café, faço religiosamente a barba, etecetera e tal. Vou pro ateliê e começo um trabalho duro, seja em madeira, têmpera, encáustica a fogo, cerâmica, concreto, óleo, ferro aplicado em concreto ou terracota. Não enjeito serviço nem refugo técnicas, como diz Rubem Braga. Lá pela 10 e meia, estou cansado, saio um pouco, brinco com o cachorro, vou até a esquina fazer umas compras inúteis... 

O ateliê de Caribé é amplo, uns 150 metros quadrados. Dentro os materiais diversos e as ferramentas apropriadas. Fora, o jardim bem verde, repleto de orixás esculpidos, entalhados, arte popular de todos os países do mundo por onde passa. Herdei de meu pai a mania de cigano, aparecendo dinheiro, viajo sempre. 

– Almoço o trivial, nada de especial. Volto ao trabalho, paro pelas cinco e meia, pois só trabalho à luz do sol. Então cochilo meia hora, tomo banho, saio pelas ruas de Salvador, volto, janto com Nancy, vou à casa dos amigos ou eles vêm à minha: Jorge Amado, Jenner, Camafeu de Oxossi, o Genaro que a má sorte levou... 

– Algum “hobby”? 
– Nenhum especial, fora a arte popular, a minha Bahia, as baianas, um documentário gráfico do candomblé, pois acho que daqui a uns 50 anos ele desaparece e a religião brasileira vai ser uma misturança infernal, vai ter até austríaco pai-de-santo... Mas, voltando ao trabalho, faço desenho, escultura, gravura, mural, o que for. E não paro fácil, mesmo. Esse negócio de a gente ficar pensando, olhando, esperar o “clic” do Padre Vieira, não existe mais... O que existe é trabalho, treino, para a obra de arte sair. Para mim. Inspiração é o dia em que amanheço melhore as coisas saem comais facilidade. 
Festa do Pilão de Orixá

No dia da inauguração de seu mural dos 27 orixás, em Salvador, registra um jornal local, Hansen, Jenner, Jorge Amado, Mirabeau, Odorico Tavares, Calazans, Vivaldo Costa Lima, Genaro de Carvalho (ainda vivo), ficaram admirados com a obra espetacular. “Isto cai parar, um dia, num museu de arte europeu. Não é arte brasileira mais, é universal” (Costa Lima). “O melhor trabalho de Carybé, ele que tem horror à madeira” (Hansen). “Com este trabalho aparece meu maior concorrente” (Mário Cravo). Os banqueiros exultavam, os pais-de-santo também. Carybé brincava, ao lado de Nancy, sua mulher argentina, os filhos Ramiro, já pintor, mas puxando para o expressionismo, e Solange. Desta, tem uma neta, “uma das coisas boas que me aconteceram até hoje”. 

Em São Paulo, críticos, artistas, o presidente do MAM, Joaquim Bento Alves Lima, exultavam, na noite da exposição do mural, Opinião unânime: um trabalho excepcional, “a obra maior de Carybé”.

 – Por que nunca saiu do figurativo? 
– No figurativo, a meu ver, está a verdadeira arte, não admite enganações e experimentos frustrados. O Brasil é tão belo e ainda falta fixar tanta coisa do nosso país... E antes que a tecnologia despareça com muitas delas... 
– Por isso os baianos fazem uma arte puxada ao regional? – Não acredito em arte universal, o que existe exatamente é a verdadeira arte, a arte boa, autêntica, seja ela de um Cèzane, que nunca saiu de um estúdio, de um Van Gogh, cuja arte era ”ele”, de um Modigliani com suas mulheres, de um primitivo bom. O pintor que vale, fica, não é como os sapatos de plástico... 


– E as novas experiências? 
– Admito algumas. O Di Prete, por exemplo, faz uma arte interessante, à base de ruídos e luzes. Mas o Di Prete, “já era”. Não é um frustrado nem um inexperiente em arte. E Picasso. Aos 90 anos, continua cada vez mais Picasso, mais “ele”. 

Fala num amigo primitivo, um sapateiro. Muito noticiado, não alcançou um bom nível, contudo nem se torneou um bom pintor, resultado: perdeu até a profissão de sapateiro... Elogia a iniciativa de Iracema Ardit , de organizar o Museu dos “naifs”, aqui no Brasil. 

– Veja a arte baiana, como progrediu, como um todo. E lá estamos nós, os baianos de nascença e nós todos, eu, que nasci na Argentina, O Jenner, sergipano, o Hansen, alemão. A nossa inspiração, a nossa temática, desculpe o talento de cada um, venceu. A tapeçaria baiana, iniciada por Genaro, é a primeira do país e assim permanecerá por muitos anos, graças ao labor artesanal das tecelãs, ao colorido primoroso, à criação na base dos temas populares, folclóricos, regionais. O mesmo se pode dizer dos nossos gravadores, nossos entalhadores. Olinda e Salvador disputam o páreo dos melhores trabalhos no gênero, Zu Campos, Emanuel, tantos outros, s]ao gente de fibra, trabalham, pesquisam, fazem uma grande arte. 
Mulheres

 – E a arte brasileira em geral? 

Carybé, tão palrador, desconversa. Ele tem uma sala especial na próxima Bienal, vai expor uma pequena retrospectiva, com cerca de 20 obras, de 1938 até agora. Amanhã, abre sua mostra de óleos em “A Galeria”, de 5 a 8 mil cada quadro. Em S. Paulo, anda pelas ruas, observa umas e outras, ri das mulheres de meia furada... É um folgadão, um companheirão, um grande papo, segundo comentam alguns de seus amigos daqui, como Almeida Salles e Luiz Lopes Coelho. 

– Em 1972, paro uns meses, quero ficar um pouco de barriga prô ar. Vou dar uma de banqueiro por uns tempos. 

Seus irmãos são pintores e escultores. Começou a pintar no Rio, no ateliê de cerâmica do irmão, com 14 anos. Veio com oito para o Rio. De suas viagens, confessa sua fascinação pela arte mural mexicana, Orozco. 

– Eu quero ficar na minha casa, sossegado, trabalhando. Trabalhar, para mim, na Bahia, é viver. 29/9/71. 
Carybé com uma de suas obras

O mestre das sete portas 

Em 1938, há trinta anos, Carybé (Hector Bernabó) aportou na Bahia, vinha carregado de índios, sombreiros, tangos, aldeias andinas e, segundo o depoimento de Jenner Augusto, era elegantíssimo, trajava polainas, colete e paletó lascado atrás, noda audaciosa na época. Mesmo assim era um inquieto, em busca de sua pátria perdida, do chão de sua sensibilidade, de seu porto de abrigo, de seu lar. Onde a terra verdadeira desse cidadão brasileiro nascido em Buenos Aires, de pai italiano e mãe gaúcha, menino nas ruas da Itália, adolescente no Ri, jovem artista na argentina, aventureiro pela Bolívia e Peru, pelo Chaco, buscando e buscando-se? 
Eis que chega à Bahia, a seu sol, a seu mar, a seu azul mágico, a sua mistura, a seu chamego, a seu dengo, a seu mistério. Nos trinta anos decorridos desse momento solene do encontro do artista com seu chão, com sua pátria, com seu lar, Carybé plantou raízes tão fundas na terra baiana como nenhum cidadão aqui nascido e amamentado. 
Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou cada dia e cada vez com maior conhecimento e amor incomparável... Agora são uma única realidade, a terra e o criador, a inspiração e a obra realizada: nesses trinta anos se fez não apenas o grande mestre baiano, mas o cidadão baiano per excelência. Sua obra nos engrandeceu, deu-nos maioridade artística. A Bahia, ao mesmo tempo, fez dele o grande mestre do desenho, da pintura, da escultura – o conjunto dos Orixás esculpidos em madeira para a agência de São Pedro do Banco da Bahia é uma das obras maiores da escultura brasileira. Ele é filho e pai da Bahia, dela nasce todas as manhãs e todas as manhãs ele a recria em toda sua beleza, em todo seu mistério, em toda sua verdade. Outro dia, uma jornalista lhe perguntou: 
– Onde o senhor nasceu, seu Carybé? 
– Nas Sete Portas, minha filha – respondeu. 
Nasceu ou renasceu, que importa? (JORGE AMADO, Coleção Plásticos da Bahia, Carybé, 1938 – Desenhos 1968) 

O muralista Carybé é um tremendo trabalhador braçal que não enjeita serviço nem refuta técnica. Tanto quanto sei, nunca fez nada em mármore ou bronze “tutto tondo”, para não botar banca de escultor. Isso não evitou que Pablo Neruda dissesse, a respeito desses orixás talhados em cedro (que felizmente puderam ser transportados até aqui, no Museu de São Paulo, lá da agência do Banco da Bahia da Avenida 7, de Salvador): “é uma grande escultura!”. Juntemos que é toda uma criação de iconografia de candomblé feita por alguém que vive por dentro de terreiros e pejis. Fotografias nem sempre satisfatórias servem para dar uma idéia dos painéis que realizou com as mais variadas técnicas: têmpera, encáustica a fogo, entalhe em madeira, concreto, óleo, ferro aplicado em concreto, cerâmica e terracota. Diga-se que ele ama as técnicas mistas, e no óleo do imenso painel do aeroporto Kennedy, de Nova Iorque, há aplicações de prata, ouro, cacos de espelho, mosaicos, botões, etc. Ele adora as cores vivas e as coisas brilhantes, como os pretos e os índios, e às vezes se castiga com o cinza austero do cimento, só para variar. O que não muda é o desenho do mestre. (RUBEM BRAGA, Arte Mural, Carybé no Museu de Arte Moderna, 1971).

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