segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

PENNACCHI

A preocupação principal da minha existência, hoje em dia, como da minha senhora, está em cumprir as leis de Deus, o nosso Grande Mestre... Educar os filhos, prepará-los para o mundo de hoje, cumprir a nossa missão na terra, ganhar a vida espiritual... Estudamos a vida dos santos, sempre comovedoras, somos muito religiosos... Só em Deus encontramos a nobreza, a bondade, a caridade que nos cerca e cuja busca nos torna felizes... Quanto à minha arte, continuo fazendo pintura e cerâmica, desenhos, afrescos, se há alguma encomenda... A Collectio quer organizar uma grande retrospectiva de toda a minha obra, desses 40 anos em que procurei retratar a gente simples e humilde do Brasil... Este país maravilhoso, grande, universal na extensão e na alma de seu povo simples, acolhedor, humano, comovente, poético... Interessa prosseguir, sim, e estou fazendo estes dias um presépio em terracota para d. Cecília Mesquita, mas, também, não posso deixar a casa, minha senhora , os filhos... E, sobretudo, a procura de Deus. 

Fúlvio Pennacchi acaba de chegar. Foi buscar uns filhos na escola. Está sem chofer agora, D. Philomena pediu. Ele a conheceu quando ensinava desenho no Dante Alighiere. A filha do conde Atillio Matarazzo, bela, alta, esquia, o atraiu pela serena beleza e nobreza dos sentimentos. Ela queria estudar desenho e acabou a senhora do pintor que chegara da Itália anos antes, disposto a ganhar a vida e tentar melhor sorte no Brasil. Aqui, talvez, pudesse evitar as brigas em família, que detestava, e defender suas ideias nacionalistas. Da união vieram os filhos Marcos, Francisca, Joana, Gabriela, Atílio, Paulo, Lucas e Maria Adélia. 25 anos o mais velho e a última com 6 anos. Todos estudam, Marcos faz administração de Empresas, trabalha também. “Todos têm talento, desenham com facilidade, mas não gostam de pintar”, diz Pennacchi com alguma amargura. Quanto à mulher, sua vocação acabou, “não tem tempo de nada, os filhos e a casa a ocupam o dia todo”... Pennacchi já guardou a Kombi, junto ao Volks alemão, seu preferido para as andanças do fim de semana, Embu e Itapecerica, “ver um pouco de verde, sair da sufocação de São Paulo”. Nas férias a família Pennacchi se desloca alacremente, todos, são as temporadas em São Sebastião, Guarujá, Serra Negra, ou Campos do Jordão. Pennacchi é cortês, fino, tem o ar um pouco cansado.

–... Hoje acordei às 6 horas, tomei um café reforçado, as crianças estavam com muito apetite também... Levei-as ao colégio, voltei, li os jornais, me interesso pela política internacional, os acontecimentos de maior importância... Contudo, de artes leio pouca coisa hoje em dia, o caos está tão grande que ninguém entende mais nada... De manhã ainda me ocupo das coisas da família, às vezes saio para acompanhar os negócios de meu sogro... O conde Atilio está com 83 anos, viaja muito, passa metade do ano na Europa, a gente tem que ver a administração dele também... Saio muito com minha senhora para fazer compras, levar os filhos de cá para lá... Nessas horas é que faço os croquis, no carro mesmo, sentado, esperando, tenho muita facilidade para o desenho... São milhares deles que tenho feito assim, sempre procuro retratar os pobres, os humildes, a gente do povo... A Philomena às vezes diz: – “Olha aquele ali, aquele é seu personagem”... 

Pennacchi está no ateliê, construído no único elevado (metro e pouco) da casa – sua mansão, onde mora desde 1942, no bairro nobre paulistano e é vizinho da família Scarpa. Casa térrea, ampla, arquitetura mediterrânea inspirada no colonial brasileiro, paredes de reboco vermelho sem pintura, com belas árvores circundantes, o pátio interno ajardinado, alto pé direito – uma casa de fazenda, projeto de Pennacchi. Acima do ateliê, a torre romana abriga a caixa d’água. Nas salas internas, pelos corredores, toda a arte pennacchiana, pinturas, afrescos, esculturas, cerâmicas. 

O ateliê, como todo bom ateliê que se preze, tem uma arrumação desorganizada. Só à noite, quando o movimento do dia acabar, Pennacchi vai dedicar-se à sua arte. 

– Almoço e janto com a senhora e os filhos e frequentemente também com minha sogra, mas sigo dia e noite o regime médico, tive uma úlcera em 1951 e não abuso de nada, principalmente do álcool, comida sem gordura, sem sal... Às vezes, numa comemoração, tomo um copo de vinho, um pouco de cerveja... E não fumo há 25 anos, é duro, mas levo essa vida simples assim... Gosto das viagens, ver a paisagem, respirar ar puro, ver o lado humano de nossa gente... O céu, a floresta, os mares brasileiros, os nossos pássaros, tudo isto aqui que o Brasil tem de maravilhoso e que não se encontra em nenhum país do mundo. 

Depois do almoço, um descanso, agora tratou dos pássaros do viveiro grande, são papagaios, rolinhas, saíras, o cardeal. O papagaio fala e imita a barulhada dos filhos. Philomena já manda um recado, o encanador chegou, são providências, contas a acertar. Diz que tem uns 20 desenhos guardados, telas de Bonadei, Rebolo, Volpi, Rossi Ozir, Graciano, esculturas de Del Debbio e Emendabile, peças espanholas e peruanas, imagens antigas de santos. Ele não poderia fazer uma casa assim só com sua pintura, o sogro deu o terreno e ajudou. “acho que esta casa nem o Portinari, nem o Di Cavalcanti poderiam construir, talvez só o Picasso”... Pennacchi ri, dois filhos entram, ele diz que “a mocidade de hoje é como as artes plásticas, está cheia de surpresas, a gente não combina muito...” Gosta sempre de falar dos amigos pintores, do pessoal do Santa Helena, dos antigos e alegres rapazes proletários, hoje senhores respeitáveis e pintores de fama – como ele, e alguns infelizmente falecidos, como o Zanini. 

– ...O Bonadei e o Volpi não gostam de colocar figuras em seus quadros, são dois grandes pintores... Mas eu adoro figuras, principalmente se retratam homens do campo, nossos caboclos, essa gente simples e ingênua, eles movimentam cada tela, acho mesmo que o lado humano é básico na arte... Eu me considero um pintor que atinge a vida humilde que vejo lá fora e rodeia as cidades... Detesto os grã-finos, quando os retrato humoristicamente... Nesse ponto me aproximo dos primitivos, tudo que é humano e pitoresco me interessa... Procuro assim fazer uma arte ingênua e pura, sempre me interessou o primitivismo... E sempre também na linha dos estudos que fiz na Itália, o renascentismo... Aqui no Brasil atingi uma linha própria, fazendo estudos e pesquisando a realidade, aplicando meus conhecimentos plásticos à visão da realidade... O Rebolo tem grande sensibilidade na cor... Tem também o Di, com seu enorme talento, o Guignard, o Pancetti, o Graciano, todos grandes pintores, todos... Quanto aos novos, não lido com eles, não digo nada. 

Fábio Porchat entra; um belo ragazzo, cineasta de talento, já pediu a Gabriela em casamento. Irá fazer um documentário sobre a vida de Pennacchi. 

 Pennacchi diz não concordar com a Bienal, ela é feita com esnobismo e extravagancia, apresentando muitas loucuras, “nesse caso, prefiro as do Juqueri...”. 


 Acha que as bienais não atingem o povo, precisam ser reformuladas, no fundo e forma. Quanto às novas formas de arte, arteônica, arte cinética e outras, “não as compreendo, é como ler árabe”. Mesmo fazendo mil bandeirinhas repetidas, Volpi exprime alguma coisa, pelo menos a cor admirável, acrescenta Pennacchi. 

Ele, quando chegou ao Brasil, era futurista, “mas não havia trabalho para os jovens pintores de então”. Sua grande chance veio quando o padre Millini, do Dante Alighieri o convidou para decorar (e ajudar no projeto) da Igreja N. Sra. da Paz. Vem daí a fama de Pennacchi, painéis e murais, pinturas, afrescos, cerâmicas, encomendas, o estímulo de Emendabile, Ungaretti, Bardi, Osório César, Sérgio Milliet, “Ciccillo” Matarazzo, Cásper Líbero, Botti, Piccollo, Del Debbio... Hoje faz pequenas telas, não aguentaria fisicamente fazer uma obra tão magistral como aquela da igreja... Nem o tempo sobra, à roda dos filhos, da mulher nobre, da casa espetacular, da administração do sogro, das viagens e das leituras, os estudos sobre arte sacra. 

Os quadrinhos são fendidos bem, na “Cosme Velho”, com as grandes molduras douradas – santos e caiçaras, caboclos e procissões, mercados e caipiras, os detalhes e a dimensão humana e religiosa de Fúlvio Pennacchi. Vai até o portão antigo, nas bandeiras coloniais bate um sol de fim de tarde, o toscano Pennacchi se despede afável, o sotaque não perdeu, a voz é rouquenha, quase gutural. Tem o olhar fixo, sua figura é ascética. Ali à roda, as grandes mansões, o artista vai todo domingo com sua família naquela igrejinha, São José, ali perto.

OS RAPAZES PROLETÁRIOS 
... Assinale-se, de passagem, que Mário de Andrade se refere à Família Artística Paulista. Não obstante, o que tem em mira, evidentemente, são os rapazes do Santa Helena, pois eles são os únicos proletários entre os pintores daquela associação. E não psicologicamente, mas proletários “no duro”. Efetivamente Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Bonadei, bordador; Rizzotti, torneiro e fresador; Manuel Martins, aprendiz de ourives; Pennacchi, dono de um açougue, distribuía carne aos fregueses, escanchado numa motocicleta fajuta; Rosa também teria um ofício manual; e Graciano, embora em 1934 já tivesse uma posição tipicamente pequeno burguesa, como fiscal de imposto de consumo, iniciara sua vida como ajudante de ferreiro, picando carvão para a forja, passando mais tarde a ferroviário, cujo serviço era pintar estações, porteiras, tabuletas e marcos de quilometragem da Estrada de Ferro Sorocabana. Todos em condições econômicas bastante modesta, portanto, dessa posição social onde se enfrentam às duras penas do trabalho braçal. – Paulo Mendes de Almeida (Álbum do Grupo Santa Helena) ... 

Os murais de Fúlvio Pennacchi inspirados no florentino da pré-renascença, são as verdades do Senhor: o Juízo Final, a Natividade da Virgem, o Cristo Crucificado, a Ceia de Emaús, o da Anunciação, o de São Borromeu, de São José, de Santa Catarina de Sena, de Santo Antonio, de São Francisco de Assis e outros. São cenas impressionantes, fixadas nos muros interiores da igreja, não só pela grandiosidade das figuras pintadas, mas ainda pelo caráter um tanto primitivo do desenho. – Leonardo Arroyo (Igrejas de São Paulo) 

...Lembra-me Pennacchi o Paul Claudel da “Annonce Faite a Marie”, mas um Claudel do qual se arrancassem as ousadias verticais, um Claudel sem falhas... sem evasões. – Sérgio Milliet (“Pintores e Pinturas”) 

... Mas voltemos ao Pennacchi atual. Observando seus quadros notamos que estes enfatizam dois importantes fatos dentro de sua obra, o primeiro refere-se à intensa utilização de cores novas e, segundo, observa-se a sua total integração aos motivos brasileiros, conseguindo dessa forma retratar nossas cenas campestres transmitindo tudo o que há de poético e bucólico na vida dos humildes do campo. Ao contrário do inicio de sua carreira, Pennacchi transformou-se num miniaturista, apresentando obras de igual beleza, brilhantismo e mesma elegância nos movimentos, demonstrando sua versatilidade na execução de pequenas grandes obras com a mesma qualidade. Nesses quadros observa-se também uma visível influência da cerâmica, influência benéfica que não altera o caráter sério da composição, mas a apresenta de uma forma mais viva e decorativa... A produção artística de Pennacchi continua até os nossos dias com a mesma força inicial, apesar de diferente na forma, cores e conjunto, e apresenta a mesma qualidade vital e a mesma distinção, mostrando através dela um artista que evoluiu e absorveu tudo que seu meio ambiente forneceu. – Valério Pennacchi (“Comentários” – 1972).

Fúlvio Pennacchi e sua obra Fúlvio Pennacchi nasceu em 27 de dezembro de 1905, na aldeia de Villa Collemandina – Garfagnana (Toscana), de uma antiga casa descendente de nobre estirpe dos senhores dela Penna di Perugia. De uma família tradicionalmente ligada às profissões legais e às artes. Lembramos entre tantos nomes, o de Piermaria Pennacchi, famoso pintor da Escola Veneziana, de quem ainda existem importantes obras datadas de 1520. 

Fúlvio Pennacchi passou a infância em sua aldeia natal e, em 1923 terminando os estudos secundários em Castelnuovo (Garfagnana) e Pisa, dedicou-se ao desenho e à pintura entrando para as academias reais de pintura de Lucca e Florença, licenciando-se em 1927. Entre seus mestres figura o pintor e gravador Pio Semeghini. São dessa época os seus primeiros quadros que retratam o milenar e pitoresco Vale da Garfagnana, bem como os “frisos” decorativos que ainda podem ser vistos nas principais casas da região. Juntamente com irmãos e alguns parentes, Fúlvio Pennacchi transferiu-se para o Brasil, aqui chegando em julho de 1929, começando em seguida o seu trabalho artístico. Nessa época conheceu o escultor Antelo del Debbio com quem começou a trabalhar, chegando a colaborar efetivamente para a apresentação de um projeto em homenagem a Ramos de Azevedo. 

Pennacchi, na crise de 1930 foi levado aos mais variados ramos de trabalho, como decorações florais, publicidade e arte funerária, não muito apreciada naquela época. Nesse difícil período (1930–32), Pennacchi criou os dramáticos quadros com “Cenas da Vida de São Francisco”, que emocionaram o então já conhecido escultor Galileo Emendabile, sendo por ele convidado a trabalhar em seu ateliê. Colaborou em projetos funerários e nos monumentos dedicados aos “Mortos da Revolução de 32” e posteriormente no de Caxias. 

Fúlvio Pennacchi passou pelos anos de 33, 34 e 35 estudando e pintando muito nas técnicas do óleo, aquarela e guache, tendo como temas preferidos as grandes composições murais, paisagens e naturezas mortas. Nessa época, integrando-se ao Grupo Santa Helena exercitou estudos a partir do modelo vivo, adquirindo certa plasticidade apesar de ainda conservar forte influência da arquitetura e da escultura. Nos últimos meses de 1935, Pennacchi participou pela primeira vez de uma mostra de arte coletiva, no Palácio das Arcadas, onde vendeu ao crítico Sérgio Milliet o quadro “Enterrar os Mortos”. Em 1935, Pennacchi tomou parte no Salão Paulista de Belas Artes, quando a comissão encarregada pelo governo municipal adquiriu sua “Fuga para o Egito”. Em 1936, pela sua participação no Salão Nacional de Arte do Rio de Janeiro e no Salão de Belas Artes de São Paulo foram-lhe conferidas as “Grandes Medalhas de Prata”. Nesse período começou a lecionar desenho no “Colégio Dante Alighieri”, atividade que manteve até 1940. Concomitantemente iniciou a decoração de casas particulares, edifícios públicos e igrejas, datando dessa época os murais nas residências de Nicolau Filizola, Antonio Pellegrino e Ciro Ramenzoni. Ainda em 1937, Pennacchi idealizou, projetou e fez construir na fazenda de Agostinho Prada, uma capela adornada com pinturas murais a óleo, retratando a vida da Virgem, via sacra em “terracota”, altar de madeira, vitrais e esculturas. 

Em 1941, começou a tomar forma definida a homenagem que a colônia italiana queria prestar à terra brasileira. Era a Igreja de Nossa Senhora da Paz. Esta é, sem dúvida, a obra em que Pennacchi faz sentir toda a sua técnica e toda a extensão de sua arte. Juntamente com o Engenheiro Pettini, concebeu o projeto arquitetônico, executou murais “afrescos” na igreja e no convento, a Via-Sacra em cerâmica maiolicada e dirigiu desde o início os trabalhos arquitetônicos. 

Em 1952, na Exposição de Arte Moderna foi agraciado com a Pequena Medalha de Ouro. “Em virtude do aparecimento de uma anarquia destrutiva nas artes plásticas”, segundo suas próprias palavras, Pennacchi afastou-se das exposições oficiais e do meio artístico em geral. Reapareceu em 1964, tendo feito em 1973 uma grande exposição retrospectiva de sua obra no Museu de Arte de São Paulo.

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