segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

DI CAVALCANTI


Bom papo. Bom copo. Fecundo. Irreverente, Demolidor. Sensual. Amigão. Boêmio. Lírico. Urbano. Incansável. Divertido. Florentino. Nostálgico. Generoso. Perfeito carioca. Brasileiríssimo. Carioca com vivência paulista. Universalista. O maior pintor de sua época. Artista sempre jovem. Precursor e comandante da Semana de 22. Mestre de nossa arte moderna. 

Pedro Manoel Gismondi, Paulo Mendes de Almeida, Roberto Alvim Correia, Menotti del Picchia, Luiz Martins, Francisco Luiz Barbosa, Oswald de Andrade, Walter Zanini já disseram, com maestria, o que pensam dele. É inútil acrescentar palavras ao quadro emiliano tão bem traçado.

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo, 74 anos, 50 de pintura, mil quilômetros de mulatas, pôs uma boina preta, pegou um taxi ali no Ca d’Oro, tocou para o Ibirapuera. Menos gordo, menos esférico, roliço sempre. Di vem chegando com seu ar jovial e seu jeitão de imperador romano ao Museu de Arte Moderna.

Diná Lopes Coelho dá os últimos retoques à grande mostra de 483 peças (telas, desenhos, tapeçarias, joias) – 50 Anos de Arte – Di Cavalcanti. 

– Você se lembra, Diná? Esta exposição nasceu num jantar em sua casa, no ano passado, entre dois vinhos e a simpatia do nosso Luiz Lopes Coelho... Vai ser realizada na minha São Paulo que adoro, onde estudei, vivi, sofri e amei... Mas evidentemente farei tudo para leva-la depois ao Rio de Janeiro, onde nasci, passei minha mocidade, vivo hoje e que amo tanto. 

Joaquim Bento Alves de Lima Neto, esportivo, recém-chegado da fazenda, intervém: 

– Di, esta é a maior realização da atual fase do Museu de Arte Moderna, desde que para cá viemos em 19969, em prédio cedido pelo saudoso prefeito Faria Lima. Para a sua exposição, contamos com o patrocínio do Conselho Estadual de Cultura, da nossa mais alta entidade de crédito, o Banco do Brasil, dezenas de firmas particulares, entidades culturais e os colecionadores de suas obras. Com esta mostra formidável, iniciamos no Brasil as comemorações da Semana de Arte Moderna de 22 que teve em você, Di Cavalcanti, um de seus entusiastas precursores e sem dúvida o maior comandante.

Além de Diná Coelho, os outros organizadores da mostra são Arnaldo Pedroso d’Horta, Artur Otávio Camargo Pacheco, Luiz Arrobas Martins e Paulo Mendes de Almeida. O catálogo é editado por Aleksander Landau, tem 48 reproduções a cores de obras de Di, a introdução é de Luís Martins e as legendas de Paulo Mendes de Almeida. A orelha é de Menotti del Picchia. 

Di sorri, pede para o MAM telegrafar ao governador Chagas Freitas, que virá à inauguração. Vai ver se a tapeçaria “As Múmias” encomendada por JK e cedida agora perlo presidente Médici, está bem colocada à entrada. Di está sereno e loquaz, ágil e inquieto. Majestoso e irreverente, papa e mestre, falando, falando, falando. 

É Paulo Mendes de Almeida, na tripla qualidade de crítico, pesquisador e amigo de Di, quem observa com precisão: 

– Di Cavalcanti é o pintor da vida essencialmente urbana, lidimamente carioca, da gente pobre, que sofrente, mas festiva, da grande cidade. No espírito, no que essa obra respira, e nos comunica, é qualquer coisa como a prosa de Marques Rebelo; a música de Villa-Lobos; ou a versão popular, mas igualmente legítima e importante disso mesmo – o samba de Noel Rosa, os chorinhos de Nazaré e Pixinguinha. Qualquer coisa, enfim, da vida mesmo. Da vida de um pintor e da sua “Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil”. 

Com sua voz sonora e firme, Di Cavalcanti sentado no bar do Ca d’Oro, onde se hospedou, conta reminiscências inéditas a uma jovem pesquisadora do Museu da Imagem e do Som, do Conselho Estadual de Cultura: certa vez em São Paulo seu amigo Oswald de Andrade, que já se retornara conhecido pelos escritos modernistas e atitudes exóticas, levou-o de carro até os arredores da cidade; chegando a um asilo, guardado por zelosas freiras, Oswald saltou o muro para ver lá dentro uma das mais lindas internas mocinhas, por quem se apaixonara doidamente... Conta que seu apelido simplificado vem do nome de uma prima, Didi. Nasceu na casa de José do Patrocínio. Conheceu Bilac, Raimundo Correia, João do Rio, Gilberto Amado, Virgílio de Melo Franco, Jaime Ovalle, Paulo Bittencourt, Assis Chateaubriant, Tristão de Atayde, Manoel Bandeira, Vinícius de Morais, todos os grandes vultos brasileiros dos últimos cinquenta anos.

– Fiz o primário, cursei o Exército, se tivesse continuado seria hoje marechal aposentado. Mas o tempo da farda foi bom, guardei do Exército os exemplos de disciplina, virilidade, força física, que tenho até hoje. Era o Rio imperial e carioca. Mas no Rio, hoje, falta uma coisa – o carioquismo do carioca. O Rio está se provincializando.

Considera-se, por isso, ainda, um homem que em toda vida gostou do pitoresco e de captar com acuidade cada fato da vida. Viveu em Paris, onde era repórter do “Correio da Manhã”. Lá conheceu os maiores pintores e escritores da capital do mundo. 

 Luiz Martins, referindo-se a influências em sua obra, destaca: 

– O que há em Di Cavalcanti de intrinsicamente brasileiro, ou melhor particularizando, de carioca, leva-o a uma interpretação pessoal, a uma espécie de tradução para o mulato das mulheres clássicas e um pouco olímpicas de Picasso, dando-lhes um frêmito, uma malícia e uma indolência que elas não tinham. 

Foi arquivista do “Estado de São Paulo”, marcador de dormentes da Mogiana. Correspondente de imprensa em Paris. Cronista do cotidiano na “Última Hora”. Já escreveu dois livros: “Viagem da Minha Vida” (1955) e “Reminiscências Líricas de um Perfeito Carioca” (1964). Caricaturista exímio e pintor. 

– Por que a mulata é um dos temas preferidos de Di? Ele ri gostosamente e fica sério:

– A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil. Ela não é preta nem branca. Nem rica nem pobre. Gosta de dança, gosta de música, gosta de futebol, como o nosso povo. Imagino ela deitada em cama pobre como imagino o país deitado em berço esplêndido. A mulata é o feminino e o Brasil é um dos países mais femininos do mundo. Não temos o machismo do México, O Brasil gira em torno das mulheres. A política brasileira, de todos os tempos, é das coisas mais femininas deste país. 

Todos os nossos poetas cantaram a mulata brasileira. Menos Carlos Drummond de Andrade. Di explica:

– O Drummond não poderia mesmo exaltar a nossa mulata. Ele é hirsuto e sisudo como todo mineiro. E Minas não faz parte do Brasil. Nada mais antibrasileiro do que Minas Gerais. 

Revista a mulata, fala das mulheres:

– Tive várias mulheres, algumas mulatas, claro. Minha primeira mulher é muito amiga minha até hoje, como as outras. Não sou a favor do divórcio, sou a favor do amor livre, por tudo e por todos. Sou um homem que ama os amigos e as mulheres. Não sou homem de abandonar ninguém, muito menos uma mulher. Sou pelo amor total. Tenho até hoje um grande amor pelas pessoas que amei. 

Di recebe a visita de Menotti del Picchia e rememora fatos da Semana de Arte Moderna. O poeta do Juca Mulato diz que Getúlio Vargas reconheceu que a revolução de 30 proveio dos ideais libertários (também) dos modernistas de 22. 

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo não quer falar de política. Nem da revista “Marcha”, que fez ao tempo da ditadura, com Caio Prado Júnior e Carlos Lacerda. Di diz que participou das “lutas populares”. Considera-se um homem livre. 

 – O mais forte é minha consciência de homem, porque eu, como homem livre, tenho de lutar para que as pessoas que amo sejam livres. Nunca pude, nem posso concordar que a liberdade seja tolhida. E isso eu acho até hoje, que o artista deve criar para a arte e com a arte a mesma grandeza que se deve criara para o homem. O homem nasce disposto a ganhar uma só coisa na vida, e esta coisa é a liberdade. Não digo isso como homem político, eu não sou um homem político. Sou um artista.


Em agradecimento ao prêmio Moinho Santista de 1972, Di Cavalcanti, com sua simplicidade, disse: 

– Foi para mim surpreendente o prêmio que estou recebendo. Sempre acredito que cumpro uma obrigação. Cumpro e cumpri, realizando a minha arte. Sinto-me um escravo do destino e o destino para mim é a dedicação ao trabalho simples e espontâneo. Minha obra de arte é meu trabalho. É meu ofício sem nenhuma preocupação de glória. E quando recebo um prêmio surpreendo-me. É que eu sou no fundo, um pessimista. A exuberância do que realizo, apesar de aparente claridade, esconde-se em sombras profundas criadas pelas desilusões da vida, mas não estou aqui para explicar meu temperamento e muito me faz feliz centralizar esta festa.

Esta festa é mais uma festa que recebo em São Paulo, neste meu São Paulo que me deu independência, que me ensinou a falar como homem livre, a amar, a lutar pelas ideias. São para onde vim estudas letras jurídicas que foram logo trocadas pelas poesias românticas e as pinceladas violentas de um expressionista convincente. 

Hoje tenho 75 anos brasileiros e me considero um ancião quente, um ancião tropical, um ancião vivo, como é viva a grande empresa industrial que dá a seus conterrâneos um prêmio que compensa os esforços de nossa cultura. O mundo hoje está vivendo um momento “sui generis” onde ao lado da força utilitária e opressiva se expande um novo humorismo que forçosamente encontrará a recompensa para os que acreditam na inteligência.

Esta festa aumenta minhas obrigações. 
Não só me glorifica. 
Glorifica as Artes que, no Brasil formam o patrimônio universal da beleza.

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