quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

CHAROUX

Charoux, concretista não-ortodoxo, “bon vivant” 
Charoux atende a campainha, claros olhos alegres sob os óculos, a roupa descuidada e esportiva. A fábrica da Lapa apita às 11 horas, da cozinha vem o cheiro dos condimentos e do almoço caseiro, preparado por Ondina, sua mulher. A casa fica no topo de uma escadaria. É térrea, sala ampla de entrada. Nas paredes, telas antigas e modernas de Charoux, figurativas, abstratas, geométricas, concretistas, “minimal art”. Charoux brinca com uma espécie de ioiô de aço, comprado na Argentina. Os fios enrolados fazem em suas mãos mil diabruras e configurações no espaço. Ele se diverte: 

 – Comprei isso em Buenos Aires, todo mundo gostou, não sei por que não comprei uns 15... Achei Buenos Aires formidável, com suas grandes lojas, seus grandes e belos parques, suas espetaculares churrascarias... E um movimento de arte de primeira água; alguns artistas fazem uma arte visual e cinética muito avançada... Estive também no Chile, terra de bons vinhos e mulheres lindas, estiquei até Brasília, andei bastante este ano. 

Charoux oferece uísque, prepara o seu. Já teve o quarte enfarte, não reduziu comidas nem bebidas, nem o trabalho. “O importante é a gente viver a vida e viver bem”, diz marotamente enquanto sua mulher o recrimina com olhos de submissa e apaixonada. Charoux quer pintar sempre, ganhar, viajar. 

 – Sempre gostei de viajar e acho que meus filhos viajam desde que estavam na barriga da mãe. Neste ano, os três me acompanharam. O Cláudio Ivo, de 28 anos, depois, rodou até o Alasca, fez 60 mil quilômetros, foi até notícia de jornal. É viajando que se aprende e se goza e se aproveita a vida. No próximo ano pretendo ir de carro até São Luiz do Maranhão, ver seu colonial português, atravessar a baía, conhecer Alcântara, voltar pelo São Francisco, rever a Bahia, o melhor e mais belo lugar do Brasil. E a Europa? 

A Europa também, o casal esteve lá em 1957 e em 1966, um ano antes da morte de Siegfried Charoux, já idoso, cuja presença física é muito grande com Lothar, iniciou o sobrinho nas artes, em Viena, nos idos de 20. Charoux guarda o grande álbum editado em 1967, com textos críticos e compilação fotográfica das melhores esculturas – algumas monumentais, em praças públicas – do mestre vienense. Carinho igual, tem por seu professor brasileiro, Waldemar da Costa, que no Liceu de Artes e Ofícios lhe ensinou sombra e perspectiva, desenho e geometria, escultura e grafismo. Lá estão, no ateliê de Charou, seus trabalhos requintados do Liceu, com a aprovação e a assinatura do antigo professor. Susi e Ami interrompem, são os dois setter da casa. Compõe com a vira-lata Fly e seus seis filhotes a fauna canina dos Charoux. Além disso, d. Ondina cuida pacientemente de uma dúzia de jabutis, um deles trazido da Iugoslávia. 

– Sei que faço mais sucesso entre pintores e críticos que o público, mas sempre foi assim... Nunca cuidei de fazer arte fácil, e para ganhar dinheiro, poderia fazer retratos ou outros modismos... O caminho que tracei foi e é difícil. Só nestes últimos tempos estão reconhecendo o valor da minha arte... Dentro ainda do concretismo, faço agora um geometrismo livre e muitas vezes não ortodoxo, não me apegando a um só campo... Gosto da “mininalart”, ou arte ótica, como dizem, criar imagens diluídas, vibrações... O meu problema é ótico e dentro do geometrismo atual, me sinto bem... e há público, sim, entre nós, para a arte adulta e séria... E agora vou aceitar fazer uns múltiplos de acrílico e vidro, entrar nisso com vontade. 

Charoux interrompe, mostra o catálogo do Curso Módulo de madureza, dirigido por seu filho casado, Raul Sérgio, 30 anos. A capa, preta, tem uma bela arte sua, prismas concêntricos, coloridos. Ele diz que gostaria de fazer arte cinética, mas lhe faltam materiais para tal, e meios para compra-los. Admira essa avançada arte e diz esperar que um dia possa realiza-la. Gostaria também de trabalhar com paralelepípedos e pedra-sabão, fazer esculturas. Nas suas telas, mostra, usa vidros e óleos, acrílicos e guaches, vernizes e um compasso. Nunca faz croquis e projeta diretamente na tela suas criações. 

Charoux - primeiro à direita

– Pinto de manhã, à tarde e à noite, pela madrugada, não tenho hora certa. Gosto de sair, ver exposições, bater papo com os amigos, beber uísque, viver e sentir tudo. Se arranjar dinheiro, e a família topar, vou à China amanhã. Não dou pelota pra doenças, “torro” todo o dinheiro que tenho. Sou contra o pé-de-meia, acho que o importante é viver bem... – repete, provocando d. Ondina.

 Lothar levanta-se cedo, às 6 horas e é um leitor incansável de jornais, revistas e livros. Confessa ter uma curiosidade universal, principalmente por política internacional, novos inventos e o quadro da arte no mundo, a situação brasileira. Detesta totalitarismos e fala com asco de fascismos. 

Considera-se um artista livre e independente, inclusive de escolas pragmáticas ou de ideologias. Gosta dos amigos de maneira total e cita, em, minutos, dezenas e dezenas de nomes... Ianelli, Bonadei, Féjer, Raquel Arruda, Decourt, Toledo Lara, Fiaminghi, Maria Leontina, Dorothy Bastos, Odeto Guersoni, Hans Kuhn, Fernando Cerqueira Lemos – o das colagens de pássaros e peixes. 

– A arte brasileira atual? Cada vez tem mais gente fazendo arte, mas a pintura parece que está caindo, apesar de grandes valores como Volpi, Bonadei, Waldemar da Costa... O desenho e a gravura, especialmente com Grassman, estão progredindo mais acentuadamente que a pintura, a meu ver... No grafismo aparecem artistas muito bons, não me lembro de todos, posso citar Cláudio Tozzi e Kakakubo... Os leilões agitam, a Bienal promove, tudo que movimenta a arte, sou a favor. 

O filho caçula, Lothar, 19 anos, estuda e trabalha no Curso Módulo. Charoux interrompe, tem mil planos, ti, ele gosta de juventude irrequieta e barulhenta. Uma das coisas que não aceita, diz com amargor, é considerarem aqui no Brasil “coroa”, um sessentão enxuto... Ir num baile e não poder dançar animadamente... Não poder frequentar uma boa gafeira com muitas mulatas, como antigamente... Por isso elegia Londres, “a melhor cidade do mundo”. Lá todos fazem o que quer, sem limitações sociais ou policiais. O inglês sabe viver, beber, gozar a vida... Ah, tem ainda os parques londrinos, amplos e floridos, repleto de gente alegre e sadia... Crharoux se levanta, o rosto corado, os cabelos grisalhos não assentam, está no terceiro uísque. D. Ondina traz salgadinhos, passa-lhe mais um pito, diz que o “Raulzinho” foi sempre assim. Um poeta romântico, um idealista sincero, uma figura humana autêntica e cordial. Culto, generoso. “Nunca falou mal de ninguém”. Cheroux está inebriado, o velho sonho das viagens, fala de olhos bem abertos.

– ...em Londres a gente não envelhece. Viena é muito agradável, mas é meio principesca, certinha... Em Londres não há racismo, a gente vê preto com branca, e vice-versa, e tem inveja... Buenos Aires também abafa, mas em Londres todo mundo é tratado com civilidade, com urbanidade... Viver é viajar... A vida do artista é uma vida de herói... A gente vive de teimoso... Eu não largo minha arte nunca... Quero fazer tudo da melhor forma possível... Viver e pintar... Viajar e pintar, amar... Sempre. 

Lothar Charoux, 34 anos de Brasil, fala sem sotaque. Despede-se ainda franco e brincalhão. À porta de sua casa, a Varinat azul, e Charoux sessentão e “bom vivant”, a qualquer hora, sai com ela por aí, invadindo cidades e bibocas, mercados e igrejas, cadeias e museus, lojas e até barzinhos chilinguentos, segundo d. Ondina, que não larga o “velho”. 5/3/72. 

Aquele silêncio poético de Lorca .

..Charoux é um artista previsível. Sua evolução não sofre sobressaltos. Da estabilidade resultante formou-se uma linguagem linear de sensibilidade pessoal, despojada e exigente, rigorosamente artesanal, num momento de crescente ressonância e meios mecanizados. – WALTER ZANINI. 

... Lothar Charoux é, antes de tudo, um artista consciencioso e coerente. Nada do que faz é indiferente... Esse artista concreto guarda da escola o rigor e a invenção; do artista, em geral, sem qualquer escola, a sensibilidade; da pessoa humana autêntica, a despretensão, o humor. – MÁRIO PEDROSA. 

 Seu trabalho é sério, meditado e medido, e suas experiências (melhor dito: realizações) sobre efeitos óticos, resultam felizes, limpas, escorreitas. Sua futura demanda, por certo, perita artesiana, e, malgrado a frieza geométrica do resultado, não dispensa, também com certeza, os haustos da inspiração – o roçar das asas do anjo que sussurra aos ouvidos dos verdadeiros artistas e lhes guia as mãos – PAULO MENDES DE ALMEIDA. 

Sua obra resulta consciente e lúcida, de leis sensíveis, porém sempre ascéticas; não é nunca um diagrama em si, permanentemente, o mistério poético das comunidades que atingem o sobrenatural, de constantes sacrifícios e pesquisas, como corpos que só alcançam a levitação à medida que se vão despojando dos potenciais nocivos – JOSE GERALDO VIEIRA. 

Informam as preocupações de Lothar Charoux em sua adstringente marcação última do espaço com traços que seriam prismáticos, os remanescentes das teorizações abstratas e concretas, geométricas, reduzidas ao minimalismo, antes que a “minimal art” fizesse sua eclosão. Porque Charoux partiu decisivamente para uma redução do último sinal no espaço, no desenho não simplificado, mas tomado em sua definitiva configuração linear. Não se lhe dá que exista o ponto – o que importa para ele é colocar no espaço a lembrança da estrutura. Então poderemos nós. Lentamente, evocar mediante tais indicações rígidas, esqueletos de esquemas, aquilo que foi outrora a forma a que ele não mais se subordina. Mas nessa contradição há uma saída, pois que o sinal subsistente é ainda rememoração, no fundo escuro, a carta-não-de-ouro permanente iluminação, é uma fresta irredutível do passado ou uma franja nítida do que vai vir e não se sabe... Em todo o caso, inclino-me ainda sobre essa área de mistério infundível, que tão economicamente se manifesta, se revela, faz uma confissão ardente embora silenciosa, de um silêncio poético – aquele silêncio de Lorca, “em que resvalam montes e ecos e faz curvar as frontes para o chão” – Maio, 71 – GERALDO FERRAZ. 

Ao centro, Ianelli e Charoux

LOTHAR CHAROUX nasceu em Viena, Áustria, em 1912. Na casa onde morava, de seu avô, vivia também Sigfried Charou, seu tio, escultor requisitado que anos depois foi viver em Londres. Veio para o Brasil em 1928, com sua mãe, Stefânia, costureira da companhia teatral itinerante austríaca. Fixou-se em São Paulo, casou-se com a quatrocentã Ondina Ribeiro Bueno. Cursou o Liceu de Artes e Ofícios, estudou pintura com Waldemar da Costa, lecionou desenho a mão livre no próprio Liceu e no SENAI. Pintor e desenhista. Nos últimos 30 anos, participou de meia centena de mostras individuais e coletivas, salões oficiais e bienais. Recebei vário prêmio, alguns deles muito importantes, principalmente nos dois últimos anos. Naturalizou-se brasileiro em 1951. Aposentado. Trabalhou durante 30 anos na firma Sedas Gutherman. Membro de vários júris de seleção, vice-presidente da AIAP – Associação Internacional de Artistas Plásticos, secção brasileira. Mora no alto da Lapa.

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