quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

CHICO DA SILVA


No Ceará, glória e do primitivo Chico da Silva 
A Allan Fisher, amigo sincero dos primitivos do Brasil L.E.M.K.

 – Povo aqui reunido... Tenho muita honra em falar a vocês... Estejam todos unidos pela massa deste torrão do Pirambu... Em nome dos artistas do Ceará eu peço a união de todos, por um dia melhor de amanhã, e que todos nos acompanhem... 

Atarracado, testa ampla, tez morena de índio, baixo, óculos de turista, vistoso no seu costume de linho tropical, Chico da Silva está prendendo a atenção dos moradores de seu bairro com seu linguajar caboclo, seus achaques, seus adágios, seu fraseado encantatório cheio de verdades, de frustrações, de psicologias astuciosas e grandiosas. Ele é o convidado principal da noite do SECAI – Sociedade Esportiva e Cultural Arco-Íris, do Bairro onde mora, o Pirambu, um dos mais pobres de Fortaleza. O SECAI, um clube recreativo-social de 400 associados, promove exposições, bailes e coquetéis, acabou com as malfadadas “gafieiras” cheias de gatunos e marginais do Pirambu. Chico da Silva está de pé junto à mesa das autoridades. Seu jeito e sua fala de expressão bizarra e sertaneja prendem a atenção geral. O presidente da sociedade, Francisco Francinetti Vieira da Costa, e os demais dirigentes trocam sorrisos, contentes com o sucesso da veneta fácil do pintor – ele que já é respeitado, querido e quase um líder popular do Pirambu. 


Chico se curva ante a trovoada de aplausos, sua conferencia terminou. Ele sai pela Rua Pirambu, onde mora, passa pelo Largo do Santo. Ali estão o velho chafariz, a Farmácia Deus e Mar, a biblioteca da Prefeitura, o Círculo Operário, as casinhas enfileiradas, brancas, azuis, amarelas, vermelhas. Uns moleques, mais uns amigos chegados, como o sapateiro Raimundo Aguiar da Silva, formam um cortejo bizarro atrás de si. Chico cumprimenta a uns e a outros, acena familiarmente, é chamado de “Dr. Chico”, ri, alegre, com a bocarra de ouro, entra no bar do compadre, é a hora de tomar umas e outras (preferência: uísque). Uma dose só, que se sente meio gordo ultimamente, inchado. Quer verse perde um pouco a barriga, a zoeira doida. 

– Nasci no Acre, nas margens do Alto Tejo – começa a depor o famoso primitivo brasileiro – junto à fronteira do Peru, em 2 de maio de 1928... Meu pai era peruano, dono de barcos, e minha mãe cearense; no Amazonas tem um bocado de cearense, sabe por quê? O cearense sai daqui porque ele é disposto, forte e rijo, não podo passar fome... O cearense é cobiçado no Sul e no Norte, se ficar aqui os carcarás matam e comem ele. 

Chico não diz que o cearense tem uma atração mítica por santos e conselheiros, guerreiros e penitentes, cangaceiros e violeiros. Ali na rua de terra batida, impecável no linho alvo, os sapatos de pelica branca – presente do comandante Paiva da Polícia Marítima do Recife, cidade que visitou recentemente – Chico é um herói de ABC, puxa o álacre cortejo de vizinhos, amigos, ambulantes, garotos vadios. 

– Comecei a pintar a carvão e giz, rabiscando os muros das casinhas dos pescadores da Praia Formosa, junto do passeio público, e em 43 fui descoberto por Jean Pierre Chabloz, um francês consertador de piano, que vivia em Fortaleza... Ele gostou dos meus navios fantasmas, dos meus peixes, das minhas aves, que fazia com giz, carvão e barro queimado, dando cor com frutos e folhas... Ele me deu material e fiz uns desenhos a guache e depois mais 17 trabalhos, que foram expostos nos “Diários Associados”. O jornalista Manuelito Eduardo deu destaque no jornal... Chabloz levou esses trabalhos para o Rio e depois para a França. Lá peguei nome e renome em Paris... Uns ele vendeu, outros trouxe de volta, devem estar com ele... Fiz muita amizade com o francês, parece que ele casou umas 4 vezes, não o vi mais. Gosto dele, sou seu amigo até hoje. 
Dragões

– O que fazia na época? 
– Sou analfabeto, só aprendi a assinar meu nome. Deixei de pequeno o Acre, já fiz muita coisa na vida... Fui sapateiro, sei consertar sapato-tanque oi polar, fui tamanqueiro, mestre de oxigênio a carbureto, guarda de barco, escafandrista de tirar coisas do fundo do mar, consertador de guarda-chuva, um pouco de barbeiro, ajudante de marinheiro... e aí foi então que, em Salvador, conheci minha mulher, Maria Dalva da Silva, filha de uma baiana que vendia acarajé no Pelourinho; tive 12 filhos, 5 estão vivos e só a Chica da Silva pinta como eu... Agora, de muito tempo para cá, sou pintor e só pintor. 

– E a história de seus alunos que lhe dão quadros para assinar? 
– Gosto de ser ofendido, não gosto de ofender... O Chabloz é que começou com essa história e também algumas pessoas que me exploraram, ficaram com o dinheiro de meus quadros... Nunca mais terei “marchands-de-tableaux”, o último que arranjei ficou com 16 milhões dos quadros que vendi no Recife... Esses que falam que meus quadros estão caindo, que eu não sou o mesmo, que vivo bebendo e fazendo farra... Enquanto for vivo, tenho valor e se morrer, t erei valor dobrado... Isso não dá pé não, isso não tem bronca, não... Só reconheço como meus alunos, que fazem uma arte como a que pinto, minha filha Chica e meu assobrinhado Manuel, filho de Raimundo, esse sapateiro aqui do Pirambu. Os grandes mestres tiveram alunos e ensinaram, porque eu não haveria de ensinar também?... O que criei, crio sempre, faço o diabo, faço Deus, tenho competência e braço forte, não caí, não... Até morrendo, se não for de repente, faço um quadro na hora, de bichos e dragões, de cobras-d’água e pássaros do céu... Manuel é meu único aluno e eu o criei desde pequeno. Sua mãe quando morreu o confiou a mim. Só ensinei a ele o bom e o bonito... Manuel e a Chica são meus únicos alunos, os únicos que reconheço como meus seguidores. 

Amazônia feérica (1964)

– Os mundos fantásticos de bichos de suas pinturas são lembranças de sua infância? 

Chico se acalma um pouco, afinal, a autenticidade das telas atuais de Chico é muitas vezes contestada, Chabloz escreveu há 3 anos um duro artigo crítico, no Jornal do Brasil” – “Chico da Silva, ou a ingenuidade perdida”. De larga repercussão. Nos hotéis, em vários lugares de Fortaleza, telas atribuídas a Chico levando sua assinatura (F D SILVA, com o D invertido) e o conhecido carimbo do polegar, são vendidas a 50, 70, 80, 100 cruzeiros, atestando a vil exploração do pintor do Pirambu, cuja fama corre estes brasis e o mundo. Chico se senta numa pedra da praia, mexeu com um velho amigo, disse um dito galante para aquela moreninha. 

– Esses mundos que pinto não são recordações de quando eu era menino, não, isso se chama imaginação, ciências ocultas, astronomia... Quando era pequeno, não via nada disso, vivia nos rios, de cima pra baixo, com meu pai... Agora estou pintando pouco e vou mudar a minha pintura... Vou pintar flores, quadros florais, acompanhadas de bichos, flores, porém, selvagens, da Amazônia... A gente quando é primitivo tem que executar e criar o que sente... E eu sinto os bichos, as selvas, os mundos fantásticos, entrando da fase de outros mundos... O mundo hoje vive em lutas e guerras. Isso tudo vai acabar, vamos entrar numa fase lunática, depois virá uma fase celeste, os homens que foram à Luz, não foram para estudar, forma por eles mesmos, por suas imaginações e ciências, são primitivos como eu... Por isso estou sempre criando, sou sempre um primitivo. 

Chico da Silva anuncia que montará em breve sua galeria de arte, a Galeria Chico da Silva, onde só venderá quadros seus. Ele mesmo será seu próprio “marchand-de-tableaux”, palavra que fala com fascínio. Será numa casinha branca, rosa e azul, com terraço e alpendre, cheia de quartos. A nova rua é a Tenente Lisboa. A casa já está alugada e passa por reforma, conduzida por dois serventes que contratou. Chico paga bem, como em suas doidas corridas de táxi pela cidade, táxis grande que aluga. Ficam esperando, enquanto negocia suas telas, ou para nas esquinas para tomas “umas e outras” com os amigos. Se é noite, deixa a dentadura de outro em casa, tem medo de ficar alegre demais, ser roubado. Conta e ri, escancara a boca toda dourada, comprou a peça no Uruguai – diz – por 800 contos. 

– Como pinta? 
– A qualquer hora, de manhã, à tarde, à noite... Pinto com a mão canhota e muito depressa... Parece que tenho uma máquina de costura dentro do meu braço... Não gosto de ninguém perto, quando pinto em casa, no quarto do fundo... Quando brinco, só brinco, quando pinto, só pinto, e acabo logo os quadros... Num dia faço um quadro... Uso guache ou nanquim, tintas e outras coisas, mas não digo mais não... A arte e a cultura são para quem pode... A pintura tem que ter muita técnica... Nem tenho conta quantos quadros pintei até hoje, o mundo está cheio de chicos-da-silva, acho que sou o pinto brasileiro que mais pinta, mais ainda que o Aldemir e o Bandeira... O Aldemir não chega a ¼ do que eu já fiz e o Bandeira, que aliás mora na França, também. 

– E o preço de seus quadros? 
– Aqui no Ceará não é o Sul, Fortaleza fica no norte do país, e o Norte é pobre e o Nordeste uma “mixaria”... E tudo está numa seca miserável como em 32... Vendo por 80, 60, 50 cruzeiros, tem gente que oferece isso... Querem rebaixar a Igreja do padre ao seminarista... Não dão valor à arte, não dão valor às coisas da terra... Pensam que o Ceará só tem animal na selva... Contudo, pinto sempre, para viver e para comer... Lá fora, meus quadros valem milhões, há pouco foi vendido um quadro meu nos Estados Unidos por 2 milhões de dólares.. E eu sei disso, pois já estive na França, na Tchecoslováquia, na Itália, em Portugal, nas Filipinas e na Alemanha. 

Chico da Silva está dolorido com suas próprias palavras, seu ressentimento transparece. São acusações, frustrações, são explorações, ele que “é bom demais”, segundo diz ali tomando o vento forte que sopra do mar esverdeado que banha Fortaleza na luminosa manhã domingueira. 

 – O Chico é bom demais, nunca explorou ninguém, o que é dele não é dele, é de quem precisa... Não tenho religião, minha religião é o amor... Minha maior satisfação é dar a quem não tem... E o que é que eu tenho?... Nada... Minha casa é alugada, tinha 3 casas em São Raimundo, o mar comeu... Agora dizem que tenho casa em Aracati, até vou lá ver isso... A casa onde moro há 20 anos está em balanço de ser minha, finalmente, pago 200 contos por mês... A Galeria vai custar mais 250... A vida é dura aqui no Ceará... E sempre fui roubado e explorado, aqui e no Sul, por galerias e “marchands”... Tem galerias ainda com quadros meus, mas vou acabar com isso... Agora só vendo direto, sozinho... Não me admiro dos outros, quero o que é meu... Não sou invejoso, não sou egoísta, não sou moralista também... Estou por fora de movimento e exposições, estou na minha pintura primitiva, abraço a todos e a tudo. 

Maria Dalva espera Chico à porta da casa, precisa de 20 cruzeiros para fazer galinha ensopada à noite. Chico gosta. Ela vai dizendo que o Chico é índio legítimo, caboclo peruano, não tem aperreio, não tem gênio, foi criado em família, é bom demais. Apenas, muitas vezes, explorado por falsos amigos e conselheiros. Ultimamente vem ajudando a gente pobre do Pirambu, o SECAI, gosta do povo, de falar. Acorda cedo, às 5 horas. Pinta, sai, almoça em casa, sai de novo, vai à televisão, aos jornais, ao Hotel Savanah, procura os turistas, vende quadros, almoça em casa, não, não come peixe, filho de pescador não gosta de peixe, gosta de feijão, arroz, farinha, jabá, uma galinha e, à noite, agora, prefere chá e bolacha, precisa comer menos, está engordando, ficando barrigudo, se toma umas caipirinhas é levado pelos amigos, diz que todos têm seus direitos... Mas como o Chico é bom em casa, para ela, os filhos. A roda à volta da casa é grande, a meninada do bairro festeja o pintor falante e triunfante. O auditório não é só infantil, os vizinhos estão ali, até um velho bistique que vende água de barril pára seus jumentos para ouvir Chico da Silva. 

– Não tenho medo da morte, quero deixar umas coisas para ficar, uns livros, quadros não deixo nada... Não sou católico nem apostólico, nem crente... Gosto dos homens porque meu pai me fez e gosto das mulheres porque minha mãe me teve... Mas quando morrer, acaba isso tudo... E a alma é para passarinho... Sinto alegria, sinto poesia, sinto música dentro de mim, às vezes sinto que sai uma música de dentro de mim... Então me sinto feliz da vida... Essa música, essa vida, muito lutei, nada roubei, o que me levaram, levaram... Sejam todos muito felizes. 22/10/72. 

A dura luta da arte cearense 

Afora Chico da Silva com suas grandezas e espantos, como vão as artes no Ceará, que perspectivas têm os artistas jovens? Hélio Rola, 36 anos, cearense de Fortaleza, premiado na Pré-Bienal do Nordeste com 5 trabalhos, premiado no XXI Salão Nacional de Arte Moderna (Rio) com 3 trabalhos, prestes a expor no Rio e em S. Paulo – grandes centros onde já tem crítica e público favorável, responde: 

– Vão mal, os jovens e os novos valores têm perspectivas muito pequenas, num meio de arte muito atrasado como o do Ceará... O nosso movimento de arte ainda está na casca do ovo, é incipiente, temos apenas 5 galerias, o mercado de arte é pequeno... Os que vivem de sua arte – e é o caso de Chico da Silva – vivem em pobreza e a agravante do Chico é que tem sido explorado sistematicamente por gente inescrupulosa... Os bons artistas daqui emigram como são os casos, por exemplo, de Aldemir, Bandeira, Inácio Rodrigues, e há pouco todo o grupo universitário, que faz teatro num bom nível, fixou-se no Rio de Janeiro. Nossa arte, aqui, é figurativa, as experiências abstratas são mal recebidas, ninguém então quer arriscar-se, e a gente da sociedade que compra quadros adquire amenas para decorar sua casa, ou compra de artistas do Sul, mesmo que inferiores, por ser mais chique, enfim, é uma sociedade muito atrasada para estimular a arte moderna em nossa terra... Temos alguns artistas bons, como o Zenon Barreto, o melhor deles, já conhecido no Sul, escultor e desenhista de t alento, temos Descartes Gadelha, Sergei Figueiredo e outros... Mas para se firmar no campo da arte, terão que sair do Ceará. Raros são os que, como Luiz Antônio Alencar, com sua notável galeria, nos estimulam. 

Rola prepara sua exposição, trabalha com guache, acrílico e óleo, faz um certo construtivismo, o ema são casarios repetidos impregnados de toques da paisagem típica do Nordeste. Já passou pelo figurativismo, está caindo na abstração poética das casinhas, que encantou os julgadores da Pré-Bienal nordestina, Olívio Tavares, Jaime Maurício e Goiabanich, críticos que vieram do Sul para julgar mais de 100 trabalhos expostos. Outro crítico carioca, Roberto Pontual, este4ve no Ceará, gostou dos quadros de Hélio Rola e arranjou-lhe duas mostras, uma no Grupo B, no Rio, com Tuneau e outros artistas, e uma coletiva em S. Paulo, na Colectio, no panorama da arte brasileira atual. 


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