quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

STOCKINGER

Stockinger (1919 - 2009)

Stockinger, gaúcho gamado, escultor guerreiro 

– Faço escultura, porque gosto de fazer escultura. Aos 27 anos de idade, após outras profissões, larguei tudo para me dedicar à escultura de corpo e alma. Foram 20 anos de necessidades e privações, e, apenas nos últimos 5 anos, meu trabalho de escultor tem-me proporcionado bom nível de vida, com casa própria, oficina e automóvel. Faço escultura como gosto e como me sinto predisposto a fazê-la e não de acordo com a vontade ou pretensões dos outros. No dia em que abrir mão dessa diretiva, deixo de ser artista, para ser um fantoche. Finalmente, faço escultura como as limitações permitem. Em geral são guerreiros, mulheres, touros e cavaleiros, um tanto violentos, não por eu ser de índole violenta, mas, sim, porque o mundo diariamente me agride de mil formas diferentes. Minhas esculturas são, assim, reações a esse mundo cruel. 


Magro, louro, bigodudo, a malha de lã protegendo do frio do minuano, Stockinger abre a porta de sua bela e ampla casa no Cristal. Ele ouve pouco – faz glosa com isso – mas é alegre, vivo e perspicaz. Um austríaco que se naturalizou brasileiro e, mais ainda, gaúcho. – Trabalho a manhã toda na oficina e, depois do almoço caseiro, vou para o jornal fazer uma charge esportiva, daí dou uma voltinha pela rua da praia, visito uns amigos e me mando de novo para casa. Quando há necessidade, me todo novamente para a oficina, caso contrário, leio alguma coisa até a hora do jantar. Aí, então, chega algum amigo, e, com um bom papo, vamos tomando umas e outras... 

A mansão, projeto dum arquiteto amigo, Milton Flores da Cunha Mattos é de bom gosto extremo, quer pela arquitetura, como pela cuidadosa decoração. As salas de visita e jantar, separadas apenas por um degrau, formam um ambiente único refinado e agradável – e do teto, num dos cantos, pende uma bela rosácea de vidro colorido, que deixa a luz do sol perpassar em tons azuis, verdes e vermelhos. Pelas paredes, Yeda, sua mulher, colocou um óleo e tapeçaria de Mabe, óleos de Scliar, Gutierres, Volpi – e, ao longo do ambiente, esculturas de Bruno Giorgi, Grassman, Brecheret e do próprio Stockinger (uma só). Em cima, após um lance de escada, no “hall” que leva aos quartos e à biblioteca, mais obras selecionadas – dois Rebolo, Toyota, um cuzquenho, Hadelen, Vergara, Cordélio, Gesa Heller, Carybé, Mabe, Danúbio Gonçalves Gutierrez, Aldemir Martins, Maria Leontina, Carmélio Cruz, Elias, José Antônio da Silva, Manezinho Araújo, Fernando Coelho. Na biblioteca, também bem ampla, a moderna lareira, e objetos que coleciona – conchas, pedra, cerâmica popular; e ainda uma tapeçaria de Nicola, quadros de Ianelli, Leo Dexheimer, Fukushima,Maria Poelo e Milton Dacosta. Stockinger olha pela janela-parede, toda de vidro, vê o Guaiba e um cinematográfico pôr-do-sol. Continua a falar: 

– À noite, quando não chega ninguém, subo, vou desenhar e ler. Em dia de exposições, em geral, saio, para rever os amigos e manter contatos com outros artistas. Aos domingos vou ao futebol, torcer pelo meu Internacional Esporte Clube. E todas as segundas-feiras à noite, jogo bolão nesse clube, evidentemente regado com muito chope... Gosto muito de ler, infelizmente, não me é possível ler o quanto deveria. Aprecio muito Camus, Dostoievski, Tolstoi, Gabriel Garcia Marques, e, dos nacionais, Lima Barreto e Marques Rebelo, e ainda muitos outros. Costumo ler tudo, até estórias em quadrinho. 

Stockinger mostra agora o ateliê espaçoso, enorme, só podia ser assim o ateliê de um escultor que trabalha geralmente grandes peças. Seu local de trabalho fica nos fundos da casa, além de um terraço florido, repleto de roseiras. Ele gosta de trabalhar com pedra, mármore, granito e metais. Pretende construir, no terreno ao lado, que espera comprar, um ateliê ainda maior. Enquanto anda, misturam-se às suas pernas, os dois cães de estimação, “Garrincha” (enquanto pequeno tinha as pernas tortas) e “Elza”. Os dois “fox-terrier” estão sempre com o escultor no ateliê, e, segundo Yeda, não deixa Stockinger nem quando ele tira sua sesta diária de 15 minutos, após o almoço – e, também, após o jantar. Ambos gostam demais das praias de Florianópolis, vão comprar um terreno na Lagoa da Conceição, para, mais tarde, morar lá. Eles gostam de viajar e cultivam bons amigos – Rebolo, Mabe, Grassman, Fukushima, Nicola, Fernando Silva, em São Paulo; e, no Rio, José Pedrosa, Milton Dacosta, Fernando Sabino, Francisco Assis Barbosa, Antônio Houaiss. Em janeiro, foram até o Paraguai, e, no próximo verão pretendem ir ao Peru, de carro. Stockinger quer conhecer as esculturas do Egito e Grécia. 


– Para falar a verdade. Não sei falar sobre a arte brasileira atual. Sinto tantas dificuldades em fazer as minhas próprias coisas que não ouso comentar as coisas dos outros. Só sei que, diante do mundo, não aqui não somos de muita importância... Quando se é jovem, pensa-se que se pode explodir o mundo através da arte, mas, depois, quando se fica mais velho, a gente se compenetra que não se explode... “bulhufas”. Mas é bom que exista esse espírito de revolta na juventude; é ele que abre muitos novos caminhos. 

D. Ethel, sua mãe, de origem inglesa, é uma graça de mulher. Ela fala bastante e junto com os filhos de Stockinger, Jussara (terceiranista de direito) e Francisco Antônio (terceiranista de economia) contam coisas pitorescas sobre o escultor. Sua mania de colecionar tudo – conchas, pedras, martelos; seu “hobby” por plantas, especialmente por rosas, que não deixa apanhar; sua predileção por um bom feijão com arroz, diariamente; seu gosto por cozinhar, inventar pratos, de cozinhar para os amigos gaúchos, Sonilton, Dexheimer, Henrique Furho, e outros; desenhou ultimamente duas tapeçarias, que Yeda está bordando e um vizinho, e-corretor de automóveis, quer industrializar os tapetes desenhador por ele. 

Stockinger conta que não participa mais de mostras onde haja premiação (“essas fofocas que atrapalham a arte”). Fala com entusiasmo de seu trabalho como diretor do Museu de Arte de Porto Alegre e de diretor da Divisão de Arte do Departamento de Cultura. Ele foi também um dos fundadores do Ateliê Livre da prefeitura da capital gaúcha, bem como presidente da Associação Rio-Grandense de Artes Plásticas. Em todos os lugares por onde passou, aconteceram coisas pitorescas, como no Ateliê Livre: foi procurado por um servente que lhe mostrou gravuras rústicas talhadas por rudes instrumentos que ele próprio fizera. Stockinger gostou do rapaz, incentivou-o. Hoje, Nestor Tavares, o rapaz de ontem, é artista firmado em terras do Sul, gravador de escultor e é ainda professor de gravura do Ateliê Livre da Prefeitura de Porto Alegre. Ele conta também de seus estudos no Mackenzie em São Paulo onde foi interno durante 9 anos, dos estudos de Meteorologia, de suas andanças como piloto. Em 1947, não podendo continua uma de suas viagens desceu em São Paulo, foi levando por Artur Graciano, ao ateliê de Clóvis Graciano. Clóvis levou-o até Bruno Giorgi – e daí, com seus estudos, lutas e muita arte, para o estágio atual. Só o que ele não quer e voltar a morar em São Paulo ou no Rio. Além do mais, Yeda é gaúcha, e, como ele, gamada pelo Sul. Quer esquecer os tempos “das vacas magras”, suas andanças com Grassmann na Guanabara. Agora, chegam à casa o pintor Carmélio Cruz, e, recém-chegada da Paulicéia, Lisbeth (Susi) Rebolo Gonçalves – ela traz uma encomenda para o escultor o recém criado Centro de Artes Novo Mundo, pede que Stockinger crie o troféu Novo Mundo – o futuro “Saci” das artes nacionais. Stockinger volta a falar de sua arte, o seu sotaque é típico, barbaridades. 

– Faço esculturas, como disse, como as limitações permitem. Fazer escultura não é mole, já fui diversas vezes ao Pronto-Socorro por causa delas... E de quando em quando me surgem nas mãos infecções desconhecidas, provenientes do trabalho em solda, e então tenho de parar... Por causa dessas paradas, para não focar totalmente inútil, comecei a fazer esculturas em pedra. Mármore e granito. São coisas mais suaves, pois, além do material não prestar a fazer o tipo de escultura que faço no metal, o martelar contínuo e monótono relaxa as tensões. As mil tensões do mundo guerreiro de hoje. 16/4/72 

O artesão do fogo e da liberdade 

...O artesão do fogo, que há em Stockinger, maneja certamente a sua soma de probabilidades, dispõe-se a perder tudo se seu ajudante, o fogo, não o acompanhar na transfiguração precedida. Mas pode e sempre leva consigo esta hipótese de conseguir toda a fulguração da imagem entrevista nas esculturas e Stockinger. Essa imagem inúmeras vezes obedeceu à asa em vôo sobre o fogo, mais de uma vez se tornou imagem imaginante que uma fonte aberta na linha, na forma, na fremente epiderme, e então contemplativamente temos ali o instante de plenitude da obra de arte... Na plenitude desses instantes então encontraremos não apenas indicações silenciosas, mas algumas que bem clamam no seu silêncio, quando rompem as correntes e nos falam de liberdade. Pois toda a conceptiva de arte que leva por diante a fé na possibilidade criativa do homem é sempre boa condutora da liberdade; para ela não há o inatingível. E quando Stockinger, através de seus bronzes e de suas correntes quebradas nos fala de liberdade, ele não está deitando manifestos sectários nem pensando em formas sociais ou políticas que marquem uma hora do quadrante... Tal maestria dominadora de elementos, da lava fervente à solidificação fria da forma, faz de Francisco Stockinger o escultor que devemos admirar em suas mil maneiras de expressão. Um expressionista, um figurativo – nele perduram as invariantes das artes plásticas e visuais de nosso tempo. – GERALDO FERRAZ. 

Ante as magistrais e dramáticas esculturas de mestre Chico Stockinger, quem conhece pessoalmente o artista pensa num São Francisco de Assis que, para exorcizar os seus demônios, tivesse criado em ferro e bronze um mundo de pesadelo, povoado de figuras apocalípticas. – ÉRICO VERÍSSIMO. 

Na carne metálica das figuras de Stockinger encontramos todas estas sábias indicações. As texturas elaboradas ao fogo e ao ácido na dura epiderme brônzea correspondem à natureza do metal, que as ostenta com condecorações à sua resistência à violência temporal dos elementos. Não há nada aí de decorativo. Tudo funciona coordenado pela idéia plástica da grandeza vertical das massas, que impõe uma presença humana majestosa. Os volumes imensos, monumentais, erguem-se severos, apesar da escarificação dolorosa, aceitando o tempo verdadeiro, o tempo da luta, o tempo da guerra pela sobrevivência, pela dignidade do ser homem. – CARLOS SCARINCI. 

Desde Bruno Giorgi, dois nomes se impuseram dentro da escultura em metal figurativa (ou alusiva) no Brasil: Jackson de Sousa e Francisco Stockinger. Este último gaúcho está expondo individualmente na Galeria Bonino. Trata-se de um vigoroso construtor de formas animais fantásticas, seres humanos e bichos, com uma conjugação de materiais brutalizantes e perfeitamente fundidos na revelação de organismos compactos. Das epidermes curtidas por erupções e assemblages ressalta o clima de fantasmagoria, de sobrevivência da catástrofe, nestas esculturas ascendentes em sua maioria de inspiração gótica. Paralelamente há um rebanho de touros, volumes atarracados e desafiantes, nos quais o metal se organiza e informa uma força de expulsão, como se os corpos terrestres que forma fosse saltar em desabalada fuga. Nos touros há um clima de beleza viril, de configuração natural despojada e concentrada. Muito importante na pesquisa atual de Stockinger a fusão da madeira com o metal, sem interrupção emotiva e tátil, como se os dois materiais não só se completassem com se autometamorfoseassem, na surpresa do desenvolvimento anatômico dos personagens. O metal assume muitas dezes uma categoria de carapaça, de malha brutalmente rompida, sob a qual assoma a carne opaca e amarelada da madeira, vulnerável, sugerindo a reestruturação da individualidade massacrada. É a permanência do ser. Está evidente a denúncia da barbárie contemporânea nestas belas peças de Stockinger. As nossas guerras, as nossas bombas, o rastro que deixamos á mercê da nossa consciência narcotizada, saltam dessas montagens tortuosas e elegantes tecnicamente virtuosas na integração de um conceito altamente moral. Uma exposição que não pode deixar de ser visitada pela categoria global de sua mensagem e de seu domínio técnico. O artista em alguns momentos exorbita de sua serena visão do desastre, e coloca as carnes sangrentas nas mandíbulas de suas feras vorazes. A imagem do homem assoma sutilmente na cara dessas feras. É o memento desagradável e poderoso da acusação. Da síntese do touro aos banquetes antropofágicos, a força de Stockinger, sua solitária individualidade e sofrido depoimento, confirmam a validade deste rumo da escultura em metal de honrosa tradição. – WALMIR AYALA, Jornal do Brasil, 7/8/1972.

FRANCISCO ALEXANDRE STOCKINGER ( Traun, Áustria 1919 - Porto Alegre, RS 2009). Escultor, gravador, caricaturista, xilógrafo, professor. Artista expressionista de teor arcaizante, com ênfase na produção de figuras sintéticas, por uso de materiais diversos e acabamento áspero. (fonte: Enciclopédia Itaú Cultural).

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