terça-feira, 6 de janeiro de 2015

CRÔNICA DOS ÚLTIMOS DIAS

Assis Chateaubrind, Ciccillo e JK
2ª Bienal - 1953

1. Nesta última semana Ciccillo saíra com o fiel Neco, para dar uma volta na cidade, foi até a Metalúrgica e a Bienal, mas não desceu do carro. Estava arfando e cansado. Mandou dar uma volta pelo Ibirapuera – obra sua - foi até a Secretaria da Agricultura no Zoológico. Foi falando de seus projetos para São Paulo do ano 2.000, onde um prédio de 30 andares abrigaria o Centro Universal de Cultura, com bibliotecas de todos os paises, cultura acessível a todos, teatro e cinema, lugar para os estudantes se hospedarem no próprio Centro. Também queria ver a pé a Bienal de Cinema, o Prêmio de Literatura Latino-Americano e tantos projetos. 

2. Em enterros e missas só usava terno preto, tinha um caderninho de telefones que não largava nunca, só usava roupas largas, visitava os amigos e ia pontualmente a galerias e museus, aos domingos rezava na capelinha do Cemitério da Consolação. Sentava-se no banco da frente, ao lado do motorista, em seu carro. Brandia, quando zangado, a famosa bengala, tratava o Ozael na Bienal igual a um Nelson Rockfeller, inquiria as pessoas com o conhecido “cosa ho fatto?”, recortava jornais – até o último dia – com uma tesourinha pequena, organizava almoços dividindo os amigos por grupos. Sua dieta era de chás e maçãs. 

3. Gostava de filme de bandido e índio, de estórias de X-9, desde os tempos em que conheci na 1ª Bienal. A cada Bienal que inaugurava já me dizia, para a “Tribuna da Imprensa”, quais os projetos e iniciativas, da próxima Bienal. E assim, esse homem que, segundo uma crítica maldosa, não conhecia arte, fala com intimidade dos muralistas mexicanos, da Bauhaus, dos concretistas, da escola abstrata, de Picasso, Leger e Kandinski.  

4. No universo cotidiano, os livros de São Francisco, os jornais de São Paulo e Rio, o jogo de paciência – se os amigos chegassem escondia a brincadeira – os quadros de todos os estilos, a biblioteca que refazia, com livros de ciência, artes e literaturas. Acima da cama simples, o crucifixo popular. Pouco antes de morrer, falou-me de outros projetos, a Superintendência do Litoral Norte (que projetara com Carlos Lacerda), o Instituto de Artes Latino-americanas, as bolsas de estudos para estudantes de artes e ciências humanas. Ciccillo! Nasceu ligado e deitou raízes no tempo e no espaço. Não teve um filho, mas amou a criação, a natureza, o belo, o ideal do entendimento entre os povos pelo congraçamento da arte.  

5. As viagens interplanetárias o fascinavam ultimamente. Já imaginou tomar um café em S. Paulo, almoçar em Nova York, jantar na Lua? Ele falava e se empolgava, o mundo é só como pregou Wilkie e a ciência espacial torna possível. “Se vou ficar na história? Que pergunta boba... Não sei. Daqui uns 100 anos, meu nome ocupará umas três linhas nalgum dicionário de artes. Mas as bienais, existirão? Talvez, como um laboratório internacional de pesquisa de arte. Chi lo sá? Va bene. Ciao.”  

6. Dizem que quando “Ciccillo” chegou no Céu, foi atendido por São Pedro, que lhe desejou oferecer um almoço. Ele liga para sua governanta Luiza, cá na terra: - É o Ciccillo. Vou almoçar por aqui, com uns santos. Manda o tinto “Vezuvino” que é de Castelabate, minha terra. Não sei se vai ter fizzilli... Na cabeceira vai sentar o São Francisco, eu fico à direita. Cosa ho fatto? São 13 à mesa? Vou pedir pro São Pedro cancelar esse almoço. Não sento com 13 à mesa nem que seja na “Colojura de Veneza”. 

7. Os almoços de Ciccillo – Ele sempre os organizava por grupos de amigos, de pessoas com interesses comuns: de literatos, de artistas, de arquitetos, do pessoal de Ubatuba, dos amigos. Com a turma de Luiz Lopes Coelho o cardápio é sempre fuzzili, cabrito e vinho tinto “Vezuvino”, de Castalabate, terra da família Matarazzo. Ele ri alarga das brincadeiras dos amigos... que fazem troça de sua deselegância folgazã, da tela acadêmica da sala do almoço... dos seus cochilos quando assiste uma palestra chata. Aos sábados Ciccillo almoça religiosamente com Yan de Almeida Prado, na casa deste, e gosta de encontrar outros amigos fraternos, como Frei Benevenuto de Santa Cruz, Mauricio Verdir,tantos outros, milhares. Mas, sempre, de regime, à base de maçãzinha. E nunca se senta à mesa onde haja 13 pessoas. 

 8. No Brás, apitam as fábricas – São 11 horas. Este é ano de Bienal. Ele apanha seu Dodge, senta-se ao lado do motorista (um velho hábito) e toca para o Ibirapuera. Cumprimenta os porteiros, fala com Geraldo Ferraz, responde Di Petre, atende Edoardo Bizzari. Vai direto à telefonista: – Alguém telefonou? Na sala de Mário Wilches, jornalista que colaborou na direção técnica, este ano, da Bienal, inteira-se dos fatos acontecidos, dos maiores problemas. Dá respostas e ordens. Não hesita, pede explicações. Com Heitor Garcia, diretor administrativo, que está com ele desde a primeira Bienal, o mesmo. Quer saber se os quadros do Peru, da Venezuela, tiveram algum problema com a alfândega.

9. – O seu Matarazzo é um a criatura única. Não briga com ninguém, atende a todos indistintamente, do porteiro ao embaixador, diz Heitor. Não humilha e não deixa ninguém à sua frente ser humilhado. Ajuda anonimamente a centenas de pessoas. Não gosta de recepções, nem de bota-foras, nem de homenagens. Atribui sempre aos outros o sucesso que alcança. Mas, também, passa por cima de tudo, das próprias conveniências, da família, dos amigos, de tudo, pela Bienal. 

 10. “Ciccillo” ouve pacientemente. É uma jovem estudante do Mackenzie. Quer passe livre para todos os mackenzistas nesta Bienal. “Claro, a Bienal é de vocês”. Lá está a Baby, sua sobrinha, para dar a permanente. Nesta Bienal, o custo elevou-se a quase um bilhão de cruzeiros velhos. Os governos federal e estadual não chegaram aos 700 milhões de auxílio. O resto saiu generosa e anonimamente do bolso de Francisco Matarazzo Sobrinho. É Ciccillo telefonando: – O ministro Passarinho confirmou presença? Ótimo. Va bene. 

 11. Às seis, seis e meia, a volta à casa. Lê agora dois matutinos do Rio. Na mesa, livro sobre todos os assuntos. Sua biblioteca foi doada à Universidade – mais de 10 mil volumes – mas forma outra – livros de ciência espacial, artes visuais, literatura, arquitetura, de bichos e pássaros, especialmente. Quando prefeito de Ubatuba, onde fez uma administração revolucionária em todos os sentidos, quis organizar o primeiro aviário do Brasil. Tem todos os livros, mais de 200 em várias línguas sobre São Francisco de Assis. Tem adoração pelo santo de seu nome. Acima de sua cama, uma imagem popular, de Cristo, de artista anônimo, parecendo arte pop. Num canto da mesa, o jogo de paciência – que faz sozinho, nos fins de semana – mas, se a campainha toca, é um amigo, guarda-o, depressa, na gaveta. São, agora, sete da noite, e “Ciccillo” comeu um lanche rápido – mais duas maçãs, é claro. Saiu até a galeria “Azulão”, quer prestigiar Sofia Tassinari, que organizou a Noite da paleta, beneficente. Cumprimenta todos, já quer sair. Vira-se para a amiga íntima: – Vamos ao cinema, tem filme de “cow-boy”? 

 12. – No cinema, diverte-se, se tem muito índio e há muita flecha. Ri e descansa, então, o formidável realizador das Bienais, do TBC, da Vera Cruz, da Cinemateca, do IV Centenário, do Museu de Arte Contemporânea, do Museu de Arte Moderna (a intenção dele era fundar uma galeria de arte moderna, em São Paulo, em 1949, mas Rockfeller doou uns quadros, o assunto precipitou-se, então “Ciccillo”, Tarsila, Nonê e Almeida Salles, criaram o Museu de Arte Moderna – uma história a ser contada devidamente ainda). Nos fins de semana, visita os amigos, não perde missa na capela do velho Cemitério da Consolação, às vezes vai ver aquela freira que o orienta nas inquietações do espírito. Afinal, “Ciccillo” é um religioso. 

13. – Às 11 da noite, está deitado. Lê por uns 40 minutos, durante o dia colecionou muitos recortes – leva uma tesourinha na pasta preta, para tal – é hora de saber de tudo. Um inquieto, sempre, um reformador, todos os dias, um insatisfeito consigo próprio, por isso tão criador, tão tímido em ação permanente, um franciscano no meio social, o d’Artagnan do bom combate, o culto homem, o amigo que se dá por inteiro aos amigos, o sábio e experiente intelectual, o brasileiro – com Pelé – mais conhecido no exterior, embaixador e ministro de todas as artes, dorme ele agora, afinal, Francisco Matarazzo Sobrinho. O bom e franciscano “Ciccillo”. 

14. – Mas se tocar o telefone á cabeceira, ele atende imediatamente, diz o Neco, agitado, eficiente, elétrico, já com mil recados para “seu” Matarazzo, o homem do centro do mundo.

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